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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bolsonarismo militar alimenta crise com Lula após ignorar fome ianomâmi

Golpistas invadem e depredam Congresso Nacional e pedem golpe militar - Felipe Pereira
Golpistas invadem e depredam Congresso Nacional e pedem golpe militar Imagem: Felipe Pereira

Colunista do UOL

22/01/2023 09h06

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Logo após Lula trocar o comandante do Exército por um legalista, o general da reserva e senador eleito Hamilton Mourão disse que isso alimentava uma crise e era péssimo para o Brasil. Péssimo para o país, na verdade, é a tentativa de genocídio dos Ianomâmi, que vem ocorrendo sob as vistas de militares e responsabilidade do então vice-presidente Mourão, que era o chefe do Conselho Nacional da Amazônia Legal.

As Forças Armadas deveriam estar expulsando e prendendo garimpeiros que invadiram terras indígenas, bombardeando e retomando pistas de pouso usadas por criminosos, abatendo, como prevê a lei, aeronaves que invadem nosso espaço aéreo para um comércio ilegal que leva crianças indígenas à morte e protegendo a soberania nacional através do cuidado com as nossas fronteiras. Preferiram ser cúmplices do governo Bolsonaro, que elegeu povos tradicionais como inimigos.

Tempo e energia preciosos para salvar vidas foram gastos para ajudar o discurso golpista sobre urnas eletrônicas e passar pano para manifestações golpistas em notas públicas. Durante meses, o Exército serviu como segurança de luxo para golpistas - como aqueles que depredaram as sedes dos Três Poderes e se refugiaram no acampamento em frente ao seu quartel-general, na noite do 8 de janeiro, protegidos por blindados. O general Júlio César Arruda, então comandante da força terrestre, é apontado como um dos que não permitiram que os terroristas fossem presos em flagrante.

Levantamento do jornal New York Times, de 2022, apontou 1.269 pistas de pouso não registradas na Amazônia, muitas das quais usadas pela mesma indústria ilegal protegida por Jair que saqueia nossas riquezas e financia o genocídio indígena. Sem aviões praticamente não haveria garimpo ilegal na terra Ianomâmi.

Há militares que sussurram através de aliados que eles se sentem desprestigiados pelo novo governo diante de ações como a demissão de Arruda. Mas a população é que se sente desprestigiada quando as Forças Armadas fuzilam inocentes "por engano", impõe postos de controle de pobres em comunidades do Rio ou gasta dinheiro do contribuinte comprando Viagra e próteses penianas. E, nem por isso, deixa de lado seus afazeres do dia a dia.

Se a mesma energia com a qual protegeu golpistas tivesse sido empregada na proteção das regiões Norte e Oeste da fronteira amazônica, talvez o garimpo ilegal tivesse matado menos ou o destino do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Phillips, assassinados no Vale do Javari, tivesse sido diferente.

A presença seletiva do Estado, que chancela a ação de madeireiros, pescadores, caçadores e, claro, garimpeiros ilegais e ataca instituições de monitoramento e controle, garante uma cara de terra de ninguém. Claro que não depende apenas da vontade de generais o aumento de contingente e a garantia de infraestrutura para que possam cumprir suas funções. Mas se muitos se manifestassem publicamente por mais recursos a fim de proteger aquela região com o mesmo vigor com o qual criticaram o TSE, a situação seria diferente.

Forças Armadas são importantes para qualquer país, desde que saibam quem devem proteger. A sua potência está na capacidade de respeitar a Constituição Federal, não de obter benefícios em troca de ser usada para atender às necessidades de um governo de plantão e de golpistas que acampam na porta de suas instalações.

Nos últimos quatro anos, Jair Bolsonaro conseguiu cooptar parte dos militares com cargos, vantagens na Reforma da Previdência, licitações de produtos de luxo para o oficialato. Cobrou, em troca, sujeição para degradar a democracia e cumplicidade enquanto garantia o vale-tudo ambiental e social na Amazônia.

A mesma parcela de militares que acha um absurdo chamar "intervenção" de "golpe" também vem considerando um exagero membros do atual governo falarem de genocídio na Calha Norte brasileira. Até porque isso recai diretamente sobre eles.

E, vale lembrar, que de tentativa de genocídio a ditadura militar, celebrada por essa parcela, entende bem. Os Waimiri-Atroari vivem entre os Estados de Roraima e do Amazonas. Durante os anos de chumbo, milhares deles foram executados em nome da implementação de grandes projetos na região.

Relatos colhidos de sobreviventes em uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) contam que helicópteros sobrevoaram aldeias derramando veneno e detonando explosivos sobre centenas de indígenas reunidos para celebração de rituais de passagem. Depois disso, ataques a tiros, esfaqueamentos e degolas violentas praticadas por homens brancos fardados contra adultos e crianças sobreviventes. Tratores passaram, na sequência, destruindo tudo.

Um dos sobreviventes conta que, após um dos ataques, os indígenas "começaram a sentir muito calor no corpo, não conseguiam mais andar e ficaram todos 'muito doentes', em decorrência de veneno jogado do alto". E, ao se ver praticamente sozinho em meio aos corpos de seus pais e irmãos, "testemunhou homens brancos entrarem na aldeia por terra, armados com facas e revólveres", afirmou o MPF.

Além dos ataques, as obras para a abertura da rodovia BR-174, ligando Manaus a Boa Vista e à Venezuela, levaram doenças para a população kinja (como eles se identificam). Muitos morreram sem apoio e a rodovia se tornou vetor de ocupação do Estado de Roraima e orgulho da ditadura. O relatório da Comissão Nacional da Verdade afirma, com base em dados oficiais, que houve uma redução de 3 mil, nos anos 1970, para 332 indígenas nos 1980. Bolsonaro cita sempre, talvez por um sarcasmo sinistro, essa região como exemplo de preservação.

No ano passado, o ex-presidente foi representado no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda, por incitação ao genocídio de indígenas. E isso antes mesmo das ações contra a saúde desses grupos durante a pandemia de covid-19. Quem levou o caso à corte foi a Comissão Arns e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu).

Waimiri-Atroari, Ianomâmi, muda a etnia e o ano, mas não o comportamento. Parte das Forças Armadas, ao ter se aliado de forma quase incondicional ao ex-presidente e à sua política, tornou-se sócia de um processo de morte. Mostra que, talvez, estejamos condenados a ver a História se repetindo. Primeiro como farsa e, depois, também.

É triste concluir que se o território indígena tivesse sido tratado pelas Forças Armadas com o mesmo carinho com o qual protegeram os acampamentos golpistas em frente a quartéis, uma tentativa de genocídio teria sido evitada e crianças estariam vivas.