Topo

Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tragédia no litoral é fruto da desigualdade social com a mudança do clima

Colunista do UOL

19/02/2023 15h44

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

As fortes chuvas que mataram, alagaram, bloquearam, soterraram e desabrigaram no Litoral Norte de São Paulo, neste final de semana, são o tipo de evento extremo que os cientistas têm em mente quando alertam para as mudanças climáticas. Grandes tempestades ocorreriam mesmo sem elas? Claro, mas o aquecimento global altera a sua frequência, que passa de séculos ou décadas para anos ou meses.

O clima, contudo, explica apenas parte da tragédia. Como pode ser visto pelo que aconteceu no litoral paulista, a chuva afeta a todos, da rica Riviera de São Lourenço aos morros e várzeas que abrigam os mais pobres. Mas é principalmente a vida dos vulneráveis, empurrados, por décadas, para os locais mais arriscados, que fica em risco quando a chuva vem forte.

Esse processo decorre da especulação imobiliária, que garante as melhores e mais seguras áreas do litoral a quem tem dinheiro, fazendo com que moradores tradicionais e trabalhadores migrantes se virem em outros locais. Processo que conta com o apoio do poder público. Em São Sebastião, por exemplo, há ocupações ilegais em áreas de risco que foram regularizadas sem a realização de mudanças estruturais. Isso gera voto, mas pode tirar vidas.

Tragédias causadas por fatores imprevisíveis chocam, mas deixam um gosto menos amargo do que aquelas que poderiam ser evitadas ou mitigadas pela ação do poder público municipal, estadual e federal. Afinal de contas, todo mundo sabe que o combo "chuva, especulação imobiliária e falta de políticas públicas" vai matar anualmente. Menos as autoridades.

Para além das ações de realocação de vítimas e resgate de corpos (como o de uma criança de sete anos, morta após uma pedra atingir a casa em que estava em Ubatuba, e o de uma mulher de 40 anos que morreu com o desabamento de sua residência), um pedido de desculpas por parte das autoridades seria, portanto, o mínimo civilizatório neste momento.

Chamamos equivocamente de "desastres naturais" as mortes causadas por inundações, deslizamentos, entre outros eventos. Mas não há nada de natural nisso, pois é possível prever e reduzir o sofrimento causado.

A retirada da população de um local, com antecedência, e a recolocação em outro, de forma decente e digna, é um exemplo. A melhoria estrutural de uma comunidade para evitar um deslizamento, é mais um. Políticas de moradia que construam casas em locais fora de risco é outro e políticas de desenvolvimento viário, que prepararem nossas rodovias para as chuvas. Pesquisas para o levantamento de novas áreas de risco e o desenvolvimento de protocolos de retirada são fundamentais. Sem falar na adoção de sistemas de alertas decentes, emitidos dias antes. Se esses processos não são implantados é também por irresponsabilidade ou incompetência de gestores.

Faltam recursos? Sem dúvida. Mas prioridades precisam ser estabelecidas e a garantia da vida é a principal delas. No Brasil, se choveu mais do que deveria, moradias acabam engolidas pela lama e pessoas, esmagadas por pedras, fica a impressão de que não daria para fazer nada. Isso está implícito na famosa declaração: "choveu mais do que o previsto", muito famosa entre prefeitos, governadores e presidentes. Mas não é bem assim.

Porque os antigos registros históricos de chuvas não valem mais com as mudanças climáticas. Governos têm ignorado nos planejamentos os estudos e relatórios que mostram que a alteração do clima já afetou, de forma definitiva, nosso regime pluviométrico. E preferido jogar para a população o preço, econômico e social, dessa incompetência ou cara de pau.

O país não precisa de políticos otimistas, mas de pessoas capazes de encarar a realidade e responsabilizar-se por ela. Não precisamos de administradores religiosos que rezam por uma trégua dos céus, terceirizando a responsabilidade para Deus. E sim de gente realista, que tem o perfil de alguém que espera sempre o pior e age preventivamente, não culpando as forças do universo pelo ocorrido, muitos menos a estatística e a meteorologia.

O Brasil está produzindo refugiados ambientais

Nos últimos quatro anos, vimos o governo Bolsonaro e sua base de apoio no Congresso Nacional afrouxando regras e leis que fragilizaram o meio ambiente em busca do lucro fácil de seus patrocinadores e apoiadores. Desse ponto de vista, como já disse aqui, o que é chamado de "desastre natural" deveria ser tratado como descaso para fins de responsabilização judicial. Ou, ao menos, eleitoral.

Quem terá que deixar suas casas definitivamente por conta das tragédias deveria ser tratado por um nome correto: refugiados ambientais. Nas próximas décadas, veremos centenas de milhares ou milhões deles no Brasil.

Brasileiros assistiram assustados, nos últimos tempos, a queimadas monstruosas, a deslizamentos de terra assassinos, a tempestades de areia engolirem cidades no interior, a rajadas de ventos fortes causarem mortes e a água faltar na torneira das cidades, na irrigação da lavoura, no calado das hidrovias.

O que muitos chamaram de inferno é apenas um aperitivo de nosso novo normal. Já ajustamos o termostato do planeta para a posição "gratinar os idiotas". E, neste momento, diante da falta de medidas eficazes tomadas por governos para reduzir as emissões de carbono, estamos nos esforçando apenas para que o assado fique pronto antes da hora.

O mundo tentava manter o aumento da temperatura global em 1,5 grau Celsius até 2100, o que deve ser praticamente impossível dada a nossa incompetência. Podemos chegar a 3, 4 ou 5 graus a mais. De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), com um limite de aumento de 2 graus Celsius na temperatura global, 37% da população global estará exposta a ondas de calor severas pelo menos uma vez a cada cinco anos; o nível do mar vai subir quase meio metro até 2100; a pesca reduzirá a produção em 3 milhões de toneladas e a agricultura produzirá 7% a menos de trigo nos trópicos.

A Era da Mudança Climática, fruto de nossa ignorância, está apenas começando. E, mesmo que consigamos mitigar um pouco seu impacto e nos adaptar, o novo normal não será algo bonito de se ver. E vai, anualmente, matar, alagar, bloquear, soterrar e desabrigar.