Topo

Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Rega-bofe no RS chama de ‘erro’ crime de escravidão na produção do vinho

Ginásio para onde os trabalhadores foram levados, em Bento Gonçalves (RS) - Grupo Especial de Fiscalização Móvel
Ginásio para onde os trabalhadores foram levados, em Bento Gonçalves (RS) Imagem: Grupo Especial de Fiscalização Móvel

Leonardo Sakamoto

Colunista do UOL

02/04/2023 14h04

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Vinhos da Aurora, Garibaldi e Salton foram servidos intencionalmente em um jantar oferecido por uma família de empresários a seus pares e políticos durante o South Summit, em Porto Alegre, um evento global de inovação e tecnologia. Semanas atrás, 207 trabalhadores haviam sido resgatados da escravidão na produção das três vinícolas.

"Todos, na nossa trajetória, temos acertos e erros. Eventuais erros têm que ser corrigidos. Assim é com o vinho gaúcho, com a comunicação, com qualquer setor. O Rio Grande do Sul tem uma classe produtiva que nos gera muito orgulho", afirmou o anfitrião Nelson Sirotsky. A sua família é proprietária do grupo RBS, dono do jornal Zero Hora, onde foi publicada a declaração.

Para ele, a escolha foi simbólica.

Um evento que trata de inovação não combina com a falsa competitividade obtida através da concorrência desleal e do dumping social representados pela escravidão contemporânea.

Até porque trabalho escravo contemporâneo não é um resquício de uma forma de exploração antiga que se manteve apesar do desenvolvimento do mundo, mas uma das formas utilizadas por empreendimentos para concorrerem em um mercado cada vez mais global, cortando custos onde é mais fácil. Ou seja, no trabalho.

Seria mais útil para o fim da escravidão no Brasil, um crime e não um "erro", que os eventos paralelos do South Summit tivessem se voltado a discutir como resolver esse problema. E os rega-bofes, ao invés de fazer um desagravo a quem se beneficiou de escravizados, recolhessem contribuições a serem distribuídas aos resgatados a fim de compensar os valores insuficientes que receberam até agora se comparado com o faturamento das empresas.

A pressão sobre as empresas, mostrando que a sociedade não aceita determinadas práticas, como usar escravizados que sofriam tortura na produção de vinho, ajuda a mudar comportamentos corporativos. Por outro lado, encarar como se apenas um "erro" tivesse sido cometido transmite a impressão de que o importante é o "business as usual".

Isso não visa a acabar com uma empresa e levar à demissão dos empregados, mas exigir mudanças significativas na forma como elas agem em seus negócios. E experiências duras forçam marchas de mudança - ainda que lentas.

Sempre me perguntam se o boicote é útil para o combate ao trabalho escravo. Estudo e acompanho o tema há um quarto de século e explico que sim, mas pelos motivos diferentes do que o senso comum imagina.

Não é por causa de uma redução de receita oriunda da negativa aos produtos, até porque as pessoas abandonam a restrição diante da primeira liquidação de preços, mas por causar impacto negativo da imagem. Isso aumenta a percepção de risco, levando à fuga de investidores e parceiros comerciais durante o período em que o caso está no foco da imprensa e da sociedade civil.

O que pressiona as empresas a apresentarem políticas para melhorarem suas práticas empresariais e fiscalizarem suas cadeias de valor.

A janela de oportunidade para isso varia de acordo com o tamanho da comoção gerada pelo caso. Há alguns que ficam semanas, como o caso da Aurora, Garibaldi e Salton ou mesmo dos resgates da produção de roupas da Zara, em 2011. Outras não ganham tracão, apesar da violência envolvida - já estive em operações de resgate na Amazônia em que um cadáver de trabalhador morto ao tentar fugir foi desenterrado de uma cova rasa. Ninguém se interessou muito em saber por que ele morreu.

Normalmente, a ideia de boicote é proposta quando a produção envolvida é vinculada à ideia de luxo, como o vinho no Brasil ou uma confecção de roupas que, por aqui, é cara. Isso desperta uma revolta combinada. O mesmo acontece com bem menos frequência e intensidade quando envolve carne, café, suco de laranja, construção civil, frutas, tomate, erva-mate, cebola ou shows de música, como o Lollapalooza.

Sim, as pessoas tendem a boicotar apenas aquilo que não lhes é insubstituível. Mas, por isso, a questão não é tanto o corte de receita, mas o ataque à marca - que é o patrimônio mais valioso de uma empresa. Quem acha que a Coca-Cola vende refrigerante e a Volkswagen, carros, está enganado. Vende ideias e sonhos.

Que podem ser contaminados caso as marcas escravizem, torturem, matem.