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Racismo no Carrefour mostra que varejo não aprendeu com morte de Beto
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Lula afirmou que "a gente não vai admitir racismo", em reunião com seus ministros, após mais um caso de preconceito cometido por funcionários do grupo Carrefour. Para tanto, o presidente terá que buscar mudanças na legislação para aumentar a responsabilização das empresas por crimes contra direitos humanos.
A professora negra Isabel Oliveira foi perseguida por um segurança enquanto fazia compras no Atacadão Parolin, em Curitiba, que pertence à rede francesa, na última sexta. Depois, ela retornou ao estabelecimento e tirou a roupa em forma de protesto, mostrando a frase que escreveu no próprio corpo: "sou uma ameaça?".
No mesmo dia, Vinícius de Paula, marido de Fabiana Claudino, bicampeã olímpica de vôlei, sofreu racismo em uma unidade do Carrefour, em Alphaville, condomínio de alta renda próximo a São Paulo. Ele teve atendimento negado em um caixa preferencial vazio, que depois aceitou uma cliente branca que também não se enquadrava nos requisitos.
A coluna ouviu de assessores do presidente que o governo federal apoiará projetos que obriguem empresas a adotarem um comportamento em consonância com o respeito à dignidade humana. Um dos exemplos é o PL 572/2022, da Câmara dos Deputados, que cria um marco nacional sobre empresas e direitos humanos no país e exige que empresas respondam por danos causados direta ou indiretamente à sociedade.
O Carrefour, como sempre, emitiu notas, dizendo que lamenta, que afastou os envolvidos, colaborará com as investigações, que se comprometeu com a agenda antirrascista, que está há no país desde 1975... Ou seja, eles conhecem a legislação brasileira desde que a Lei Áurea tinha 87 anos. E, hoje, ela tem 153.
É bom que Lula não fique apenas da indignação porque o Brasil está ficando para trás em termos de leis que obriguem empresas a se responsabilizar pelo impacto negativo social, trabalhista e ambiental de sua atuação. Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos, já disse à coluna que o tema é uma de suas prioridades para este governo.
E não é possível afirmar que o tema é novidade para a empresa. Em 19 de novembro de 2020, João Alberto Silveira Freitas foi assassinado em uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre na véspera do Dia da Consciência Negra. Imobilizado, acabou sufocado e espancado até a morte no estacionamento por um segurança e um policial militar temporário. O caso gerou comoção internacional e levou a empresa a fechar um acordo para pagar uma indenização e mudar o comportamento em suas lojas.
Em agosto de 2009, Januário Alves de Santana, acusado de estar roubando um automóvel em uma loja do Carrefour, em Osasco (SP), foi submetido a uma sessão de tortura. "O que você fazia dentro do EcoSport, ladrão?", perguntaram, enquanto cinco pessoas davam chutes, murros, coronhadas, na sua cabeça, na sua boca. O carro era dele, comprado em 72 vezes. Na cabeça dos seguranças do supermercado, um negro não poderia ter carro de bacana branco.
Denúncias de racismo abundam contra supermercados
Tampouco o setor desconhece a questão. Dois homens foram torturados e extorquidos por cinco seguranças do UniSuper, em Canoas (RS), diante do gerente e do subgerente da loja, após tentarem furtar duas peças de picanha que custavam, juntas, R$ 200. Vítima das piores agressões, um homem negro foi colocado em coma induzido no hospital com fraturas no rosto e na cabeça. Após o espancamento, o gerente ainda tirou uma foto para comemorar. As imagens foram reveladas no início de dezembro passado, mas aconteceu em outubro.
Em abril de 2021, Bruno Barros e Yan Barros, tio e sobrinho, que furtaram carne de uma unidade do supermercado Atakadão Atakarejo, em Salvador, foram encontrados mortos com sinais de tortura e marcas de tiro. Imagens deles rendidos após o furto circularam pelas redes. Os seguranças do mercado teriam entregue ambos a traficantes para que fossem punidos e mortos.
Em 14 de fevereiro de 2019, Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga foi morto por um segurança do supermercado Extra na mesma Barra da Tijuca do quiosque Tropicália, onde Moïse foi morto. Ele deu uma gravata e jogou seu peso sobre o jovem negro. Pessoas alertaram que Pedro estava sufocando, mas a sessão de tortura continuou. A mãe do rapaz presenciou a cena. Pedia para o segurança parar.
Em julho de 2019, um jovem negro de 17 anos foi despido, amordaçado e chicoteado por dois capatazes após tentar um furto barras de chocolate de uma unidade do supermercado Ricoy na periferia de São Paulo. O mercado disse que os seguranças eram de uma empresa terceirizada - como sempre. Como em Abu Ghraib, no Iraque, os próprios algozes gravaram as cenas.
Ou seja, com algumas variações, a mesma cena se repete, e repete, e repete, já fazendo parte da paisagem de um país definido pelo racismo em todos os níveis de suas relações sociais. A diferença é que, nos últimos anos, as agressões, que sempre ocorreram, podem ser assistidas por milhões gravadas por câmeras de segurança ou celulares.
Considerando que há muitos que se sentem à vontade de incorporar o capataz em estabelecimentos comerciais, mas também nas delegacias e periferias, e parecem apreciar o seu trabalho de colocá-los "em seu devido lugar", os dois casos de sexta não foram a primeira vez e nem serão a última.
Empresas podem ser motores do desenvolvimento social ou vetores de manutenção da violência. É hora delas apontarem de que lado querem estar. E o governo de punir criminalmente e economicamente os gestores e empresas que insistirem em ficar no segundo grupo.