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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

STJ julga se tortura cometida por Brilhante Ustra pode ser esquecida

Carlos Alberto Brilhante Ustra - Sérgio Lima/Folhapress
Carlos Alberto Brilhante Ustra Imagem: Sérgio Lima/Folhapress

Carla Osmo, Flavia Püschel, Luisa Plastino e Maria Cecília Asperti

Professora de Direito na Unifesp; Professora da FGV Direito SP, Pesquisadora do Núcleo Gênero e Direito da FGV Direito SP; Professora da FGV Direito SP

19/06/2023 11h57Atualizada em 19/06/2023 19h18

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O jornalista Luiz Eduardo Merlino morreu em julho de 1971, aos 23 anos de idade, depois de ser torturado por 24 horas seguidas no DOI-CODI de São Paulo. O pau de arara deixou feridas nas suas pernas que gangrenaram. Carlos Alberto Brilhante Ustra, então comandante do DOI-CODI, participou das torturas de Merlino e, de acordo com testemunhas, depois recebeu um telefonema do Hospital do Exército para onde Merlino fora levado desfalecido, mas não autorizou a amputação das pernas que poderia ter salvo a sua vida.

A ditadura criou para essa morte uma explicação falsa e ele só não se tornou desaparecido porque seu cunhado, que era delegado de polícia, venceu a vigilância do IML e encontrou seu corpo.

Já tem 52 anos, portanto, a luta da família de Merlino por respostas. No Judiciário, a companheira de Merlino, Ângela Almeida e a irmã dele, Regina Merlino Dias de Almeida, moveram primeiro uma ação para que fosse declarada a responsabilidade de Ustra pela tortura que provocou sua morte, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu em 2008 que uma ação de natureza declaratória não seria cabível.

Em uma ação semelhante a essa, a família Teles obteve, no mesmo tribunal, a declaração de que Ustra foi responsável pela tortura que sofreu, confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2014. Foi a primeira, e até o momento única, decisão judicial transitada em julgado no Brasil que reconhece como torturador um agente da ditadura. No caso de Merlino o TJSP impediu o prosseguimento da ação.

Familiares de Merlino então entraram, em 2010, com uma ação de indenização por danos morais, como o próprio TJSP havia sugerido que fizessem. Em 2012, a sentença de primeira instância julgou de forma favorável o pedido de Ângela e Regina, condenando Ustra ao pagamento de danos morais.

Não se deve subestimar a importância da condenação de Ustra nesta ação. O caminho para responsabilização dos torturadores da ditadura tem sido muito difícil no Brasil. A possibilidade de responsabilização criminal, já dificultada pelo entendimento de que seus atos estariam incluídos nos benefícios da lei de anistia, confirmado pelo STF em 2010, torna-se impossível com a morte dos torturadores.

Ustra morreu de pneumonia aos 83 anos, em 2015, sem ter sido responsabilizado pela morte de Merlino. A ação de responsabilidade por danos morais contra ele, no entanto, pode continuar. É uma característica das ações civis, que seguem contra o espólio do réu se este falece durante o processo.

A ação que o STJ vai julgar nesta terça-feira (20) é, portanto, a última chance de imputar a Ustra seus atos e com isso impedir que a história de Merlino seja contada sem nunca termos uma decisão judicial condenando quem o torturou e matou.

Foi entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018, que o TJSP levou a julgamento o recurso apresentado nessa segunda ação por Ustra, herói do então candidato à Presidência Jair Bolsonaro, que havia seis anos aguardava decisão do tribunal.

Em uma sessão de julgamento acompanhada por uma sala cheia de pessoas, expectativas e tensão pela conjuntura, o TJSP decidiu que a ação da família de Merlino deveria ser extinta por prescrição, ou seja, porque teria sido extrapolado o prazo máximo para a instauração do processo contra Ustra.

Essa decisão do TJSP é chocante por diversos motivos. Para ficarmos apenas com a justificativa jurídica, ela contrariou jurisprudência firme do Superior Tribunal de Justiça. Ao menos desde 2009, o STJ vinha decidindo que as ações por danos morais, movidas contra o Estado, em razão de violações graves de direitos humanos praticadas durante a ditadura, como a tortura, são imprescritíveis.

Esse entendimento se alinha com o que determina o direito internacional dos direitos humanos, como já foi objeto de diversos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, inclusive nas sentenças que condenam o Brasil por violações de direitos humanos durante a ditadura.

De acordo com esses julgados da Corte Interamericana, os Estados têm o dever de investigar, julgar e responsabilizar agentes estatais por graves violações de direitos humanos independentemente do tempo transcorrido.

Essa característica de perenidade, nomeada como "imprescritibilidade", se justifica em casos de violações graves de direitos humanos, tanto em razão da enormidade da violência e da perenidade de seus danos, quanto porque, uma vez praticadas pelo próprio Estado, fica mais difícil que as provas sejam reunidas e as instituições responsáveis pelas respostas respondam adequadamente.

O reconhecimento da imprescritibilidade se aplica também na esfera cível, como a Corte afirmou em uma sentença de 2018 contra o Chile, sobre a negativa a vítimas da ditadura de reparação civil sob a justificativa da ocorrência de prescrição.

Depois do julgamento do TJSP, a Primeira Seção do STJ editou a súmula 647 que sintetiza esse seu entendimento já consolidado: "São imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar".

Não há qualquer justificativa para que se deixe de aplicar esse entendimento, reiterado pelo STJ em ações contra o Estado, na ação movida contra o maior torturador da ditadura brasileira. As razões que justificam a imprescritibilidade contra o Estado estão também presentes em relação aos agentes do Estado: a violação de direitos humanos, sua gravidade e perenidade são as mesmas e a dificuldade de produzir provas também os beneficiou.

Nesta terça-feira, 20 de junho de 2023, o STJ julgará o recurso da família de Merlino contra essa decisão do TJSP.

Esperamos que esse tribunal superior reverta a decisão do TJSP que contrariou a sua jurisprudência reiterada, e reafirme a imprescritibilidade das ações por danos morais por violações graves de direitos humanos da ditadura.

Esperamos ainda que o STJ tenha em conta os avanços obtidos às muitas custas no campo das respostas a essas violações: a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que em 1996 afirmou que o Estado é responsável pela morte de Merlino, e a Comissão Nacional da Verdade, que no volume 3 de seu relatório 2014, apresentou um resumo dos diversos testemunhos e outras provas da tortura e assassinato de Merlino, sob o comando de Ustra.

Se assim o fizer, o STJ, pela segunda vez, reconhecerá a responsabilidade Carlos Alberto Brilhante Ustra por tortura, e, pela primeira vez, reconhecerá sua responsabilidade por morte decorrente de tortura. Será um desdobramento de seu entendimento já bem estabelecido, mas será também uma decisão histórica.

A verdade, a memória e a reparação buscadas nessa ação não são só para a família de Merlino, são para todas e todos nós: para que a tortura deixe de ser uma prática aceita no Brasil e para que não tenhamos ditadura nunca mais.