Leonardo Sakamoto

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Opinião

Enel pisca para Sabesp e diz 'eu sou você amanhã' diante do caos em SP

A discussão sobre a necessidade de enterrar a rede de distribuição de energia elétrica para evitar a repetição do caos em São Paulo, iniciado com as chuvas da última sexta (3), resgatou também o debate sobre a razão de privatizar ou reestatizar uma empresa de serviços essenciais. Como a Eletropaulo, hoje Enel. Ou a Sabesp.

Não sou, por princípio, inimigo de privatizações, mas sou contra ser cobaia. Se uma empresa privatizada não será capaz de oferecer um serviço melhor do que uma estatal, então para que vender?

Lá atrás, quando a Eletropaulo foi a leilão, em abril de 1998, alguns dos que defendiam a privatização prometeram que a venda levaria a uma cidade mais bonita e funcional: da universalização da rede de distribuição ao processo de enterramento dos cabos.

Depois se viu que a promessa era tão capenga quanto aquela do governo Michel Temer, de que a Reforma Trabalhista faria com que corresse leite e mel no meio fio das ruas e avenidas do país com milhões e milhões de empregos gerados.

Como o processo de enterrar cabos elétricos não cabe na taxa de retorno das empresas que assumiram, primeiro a AES, depois a Enel, os resultados sempre foram pífios nesse campo.

Ao mesmo tempo, a agência reguladora do setor, a Aneel, não cobra avanços concretos. Aliás, não fiscaliza nem a insuficiente manutenção preventiva aplicada pela Enel na rede existente, que dirá ir além.

Serra, Kassab, Haddad, Doria, Nunes, todos prometeram avançar com essa questão quando prefeitos da capital. Hoje, a cidade tem assombroso 0,3% de sua rede totalmente subterrânea. Menos que uma verruga.

Claro que é caro, trabalhoso, difícil. E ninguém espera universalização do enterramento, pois nem sentido faz. Mas a empresa de distribuição foi privatizada para melhorar os serviços, realizando obras onde elas se fazem necessárias. Para isso, dinheiro privado pesado tem que ser investido na melhoria do serviço. Se não, novamente, para que vender a bodega?

Ah, mas foram colocados R$ 7 bilhões desde a compra da empresa, diz a Enel. Não se impressionem com os zeros, isso é pouco, dado o tamanho da encrenca. E ainda assim, o Sindicato dos Eletricitários diz que o valor não foi empregado onde faria diferença.

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O modelo atual do setor de distribuição de energia elétrica garante melhor remuneração à empresa por investimentos que ela fizer em ativos em contraposição àqueles em manutenção preventiva. Assim, ao invés de trocar cruzetas podres e fazer podas de árvores em locais que costumam ter falhas, empresas preferem instalar religadores automáticos.

O equipamento isola defeitos impedindo que ele afete o resto da rede e permitindo que uma turma vá lá consertar. Assim, a empresa não gasta em fazer manutenção preventiva em toda a malha, mas apenas a corretiva nos pontos atingidos. Isso pode funcionar em dias normais. Mas quando acontece um evento climático como o de sexta, defeitos ocorrem em muitos pontos da rede simultaneamente devido ao quê? Falta de manutenção preventiva. Tu-tu-dum-tssss.

Ao mesmo tempo, as privatizadas do setor de distribuição de energia reduziram o quadro de funcionários e abusaram da terceirização. Isso gerou grande rotatividade, perda de memória técnica e funcionários sem experiência. Em 2019, o número de empregados próprios da Enel estava em 7,7 mil, caindo para 3,9 mil agora.

Recapitulando: empresa não fez a devida manutenção preventiva na rede de distribuição de energia, não conta com pessoal com experiência e em quantidade suficiente para as atividades de prevenção e emergência e o seu programa para enterrar redes aéreas é pífio em comparação à magnitude de São Paulo. Isso sem contar que parece ignorar que o clima mudou já faz um tempo.

Mesmo assim, o seu presidente, Nicola Cotugno, disse a Alexa Salomão e Nicola Pamplona, hoje, na Folha de S.Paulo: "Não é para nos desculparmos, não. Foi algo excepcional. Quando chega um furacão no Texas, o problema não é a empresa elétrica, é o furacão".

O vento passou de 100 km/h em alguns locais de São Paulo, mas, na maior parte da cidade, ele não foi forte o suficiente para derrubar árvores saudáveis. Na verdade, arrancou e quebrou as corroídas por cupins e com raízes estranguladas, e, portanto, não monitoradas.

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E, diante de tudo o que aconteceu, ele ainda pediu palmas para a Enel: "Se olharmos de uma forma racional e não emocional, a gente está fazendo um trabalho incrível por um fenômeno pelo qual não tivemos controle". Deveria receber um bônus dobrado no final do ano pela ousadia.

A verdade é que se o paulistano da periferia que perdeu tudo o que tinha em seu pequeno comércio depois de ficar dias sem energia elétrica e que, certamente, não será ressarcido à altura pela Enel, for olhar o quadro "de forma racional, não emocional", vai exigir que a concessão da empresa não seja renovada.

Aliás, se a qualidade de vida dos cidadãos for, de fato, cobrada das empresas no momento de renovação da concessão, algumas podem vir a achar que deixou de ser economicamente vantajoso e abrir mão do controle. Mas não adianta tirar a Enel e entregar para outra se as regras que ela terá que cumprir e a fiscalização quase inexistente continuarem na mesma.

Com isso, a reestatização já é citado aqui e ali, como acontece com empresas de serviços essenciais em outros lugares do mundo. Isso provoca calafrios no governo Tarcísio de Freitas, que está tentando vender a empresa paulista de saneamento básico.

Hoje, a Enel pisca para a Sabesp e diz: eu sou você amanhã.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL