Leonardo Sakamoto

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Opinião

Morre Osvalinda, histórica defensora da Amazônia e pesadelo de madeireiros

Osvalinda Maria Alves Pereira, 55 anos, lendária guerreira na luta pela terra na Amazônia, faleceu na última sexta (12). Reconhecida nacional e internacionalmente por sua liderança na batalha pela reforma agrária e pela defesa intransigente dos direitos humanos, ela fundou e presidia a Associação de Mulheres do Projeto de Assentamento Areia, no município de Trairão, localizado no Oeste do Estado do Pará, às margens da BR-163.

Em 2020, recebeu o prestigiado prêmio Edelstam, da fundação sueca de mesmo nome, que bianualmente celebra ativistas de todo o mundo.

Enfim, Osvalinda terá paz. Ela vinha sofrendo há meses com problemas crônicos de saúde, agravados por uma infecção devastadora no final de 2023. Foi desenganada incontáveis vezes. Milagrosamente, sobrevivia. Seu corpo, como suas ideias, tinha esse costume teimoso de sobreviver a tudo. As constantes ameaças de morte que recebia de grileiros, madeireiros e toda sorte de destruidores da floresta, ao menos desde 2012, pareciam apenas agudizar a dimensão política de sua luta.

A região onde morava Osvalinda é uma das vias de acesso à chamada Terra do Meio, região extremamente cobiçada por todos os parasitas dos recursos da floresta. De sua casa, ela assistia à passagem dos caminhões carregados de toras, dia e noite. Mais recentemente, viu chegar também o garimpo. Nunca deixou de denunciar os crimes que testemunhava.

Quando abriu sua porta da frente para ir colher maracujás, em 2018, ela ficou paralisada ao deparar-se com duas covas escavadas, para ela e o marido, cruzes adornando ambas. Quanto é possível, de fato, seguir vivendo, de forma minimamente digna, depois disso?

Como aconteceu com tantas outras e tantos outros resistentes da Amazônia, que estão no mesmo panteão que Osvalinda passa agora a ocupar, a vida pode ser uma morte diária - todo dia uma dose não-letal de veneno simbólico que se acumula e acumula e acumula. Quando a violência não chega na forma aguda do chumbo, ela se deposita sub-repticiamente nos tecidos.

Após o episódio das covas, Osvalinda e o marido Daniel chegaram a ficar longe de casa por vários meses. Era a segunda vez que a face mais virulenta do agronegócio os forçava a ir embora.

A primeira foi em 2001, quando o casal empilhou todos os pertences que tinham em uma moto e deixaram Tapurah, no Mato Grosso, onde viviam na época, cansados da fumaça dos incêndios e da poeira do "correntão" - dois métodos tradicionais de destruição da floresta para a expansão do latifúndio. "Não somos nós que temos que ficar longe da nossa terra, quem tem que sair são os criminosos que a destroem", disse-me certa vez.

Para a agricultora, além de um direito fundamental, a terra era um dever. Se abandonasse a luta, estaria abandonando toda a sua comunidade - e todos os milhares de trabalhadoras e trabalhadores rurais que enfrentam essa mesma batalha em toda a Amazônia.

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A mulher mais corajosa que já conheci escolheu encarar de frente os que desejavam - e tramavam - seu fim. Retornou ao assentamento em Trairão. Se o preço era a morte, ela a encararia com os olhos turquesa bem abertos. Olhos que pareciam carregar o horizonte todo dentro deles, nem o maior sofrimento do mundo capaz de turvá-los.

"Nós não somos de ferro. Não somos super-heróis que podem suportar tanta agressão e não acabar destruídos. Nossos traumas estão afetando nosso bem-estar físico. Parece que tem um muro que nos impede de ter o mínimo: viver em paz, ter saúde, ter comida decente na mesa", ela desabafou, no dia em que tirei a foto que abre este texto.

É mesmo tentador encerrar uma guerreira dessa estatura nessa categoria heroica, além do tempo, além da carne. Mas Osvalinda era uma mulher, demasiadamente humana, tão cheia de ideais como de temores. Nem todos os milagres do mundo a salvariam de morrer muito antes da hora e muito antes do sonho.

As agressões que foram condenando seus órgãos vitais, um a um, são fruto de uma sucessão vexatória de falências do Estado, da Justiça, da civilização brasileira - se ela deseja mesmo merecer esse nome. É nessas brechas que operam os algozes de Osvalinda. Eles roerão a terra toda se não os pararmos.

Osvalinda fez muito mais do que podia. Muito mais do que fizemos por ela. Osvalinda vive. Morremos nós.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL