Leonardo Sakamoto

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Opinião

Deputado do centrão que votar pelo 'PL do Estuprador' pode perder reeleição

Ao contrário das bravatas de fundamentalistas religiosos na Câmara dos Deputados, de que contam com mais de 300 votos para aprovar o PL do Estuprador ou PL da Gravidez Infantil, a forte reação da sociedade acendeu um sinal amarelo para uma parte do centrão.

A aprovação do projeto que manda uma mulher estuprada que abortar (hoje, um direito legal) para a cadeia pelo dobro de tempo da pena do estuprador se a interrupção ocorrer após a 22ª semana de gestação sem dúvida bombará a reeleição de representantes do ultraconservadorismo.

Mas alguns membros do centrão que emprestam seu voto ao projeto por outros motivos podem se enrascar com o eleitorado. Pois a questão não é ser a favor ou contra o aborto, mas ser a favor que crianças de dez anos, grávidas após serem estupradas pelo pai/padrasto/tio/irmão/avô/vizinho/padre/pastor, sejam obrigadas a terem a criança.

(Lembrando que crianças e adolescentes até 13 anos são 61,4% das vítimas de estupro, 68,3% dos estupros de crianças ocorre em casa 64,4% dos algozes são da própria família, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O que atrasa a busca por ajuda médica ou legal.)

Para medir o efeito do repúdio à proposta nas redes sociais e na imprensa, conversei com um punhado de deputados federais da centro-direita e da direita democrática nesta sexta, sob condição de anonimato. Repercuti com eles os dados da pesquisa Quaest, que apontam que os contrários à ideia são mais de três vezes os favoráveis nas redes.

Todos afirmaram, sem exceção, que não dariam apoio ao projeto do jeito em que está. Justificaram-se que ele avançou só para pressionar o governo federal e o Supremo Tribunal Federal, que está discutindo a questão, ou como moeda de troca de apoio para o candidato de Arthur Lira à sucessão da casa. Acham um exagero sem tamanho o termo "bancada do estuprador", mas concordam que isso pega na população. E que pode trazer prejuízos eleitorais para parte dos que votarem.

Um punhado de deputados é enquete, não pesquisa. Mas serve para mostrar que eles sentiram cheiro de queimado. Podem não ser todos, mas deputado não é burro. Se o cálculo for mais negativo do que positivo, salta fora.

Com exceção de um naco fundamentalista da sociedade, que defende esse tipo de medida baseada em seus dogmas religiosos, as consequências do PL enojam uma parte significativa dos brasileiros. É bem diferente da discussão sobre aborto que permeou as eleições presidenciais de 2014, 2018 e 2022, por exemplo. Neste contexto, organizações de direitos das crianças e das mulheres prometem lembrar ao eleitorado quais deputados apoiaram a medida caso o projeto venha a passar. Não por vingança, mas por justiça.

O governo Lula ficou emparedado entre as críticas ao projeto feitas pelo grosso da sociedade, de um lado, e a ameaça de líderes da bancada religiosa de que o tema será explorado politicamente e eleitoralmente, de outro. Como já disse aqui, há um medo por parte de partidos de esquerda de tratar de assuntos com o aborto e drogas em ano eleitoral. Contudo, a reação forte nas ruas e nas redes fez com que o governo se reorganizasse e respondesse.

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Dentre todas as manifestações, a mais importante partiu da ministra Marina Silva, evangélica e contra o aborto, que foi bem clara: Deus não apoiaria o PL do Estuprador por roubar a dignidade das mulheres.

Pesquisa Datafolha de maio de 2022, a última a respeito do tema, apontou que 65% dos brasileiros defendiam que a legislação sobre a interrupção de gravidez deveria ser mantida ou ampliada para mais situações. Em outras palavras, concordavam que uma pessoa grávida após ser estuprada ou cujo corpo não tenha condições de suportar uma gravidez deve ter direito a interrompê-la.

Segundo o instituto, 39% defendem que a legislação sobre o aborto permaneça como está, ou seja, autorizando-o para quem for vítima de estupro, correr risco de morte ou em caso de feto anencéfalo. Outros 18% afirmam que a lei deveria ser alterada para acrescentar mais situações. E 8% querem que o aborto seja permitido em qualquer caso.

Pode-se inferir que esses 65% são piso, não teto, porque, ao realizar as entrevistas, o Datafolha não perguntou se a pessoa concordava que crianças estupradas fossem proibidas de abortar ou que a pena por aborto fosse o dobro daquela por estupro. Sim, a pergunta faz toda a diferença.

O centrão não é necessariamente ultraconservador como uma parte da extrema direita. Pode ser pragmático, fisiológico, mas não defende que o Brasil vire uma versão da Gilead, o país fictício em que os Estados Unidos se transformou após ser tomado por fundamentalistas cristãos na série Handmaid's Tale. No afã de se manter no cargo, acabam apoiando aberrações.

Por isso, é sempre bom lembrar a eles que certas aberrações são tão indesculpáveis junto a uma parte significativa do eleitorado que não há asfaltamento e quadra nova em comunidade que compense.

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Vale lembrar, por fim, que é a direita liberal o grupo que, em qualquer lugar do mundo, mais perde espaço para o crescimento da extrema direita. Em alguns países, ela percebeu isso e fechou posição com o campo democrático. Em outros, acha que está mandando bem ao se alinhar de forma oportunista a extremistas. Quando receber a fatura da aliança, já será tarde demais.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL