Leonardo Sakamoto

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Opinião

Para bater em Moraes, Bolsonaro humilhou trabalhadora da Justiça

Antes de mais nada, um aviso: desejo pronta recuperação ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Ninguém que queira a morte de alguém do qual discorde deveria participar do debate público. Mas uma coisa é a situação de saúde do presidente após a facada que levou em 2018, que precisa ser respeitada, outra é a superexploração midiática e política que ele faz dela desde então, que pode e deve ser criticada.

Internado no hospital, Bolsonaro participou de uma live em que se vendeu capacete, deu entrevista para a TV e teve a visita de políticos para discutir a anistia à sua tentativa de golpe. Diante disso, qualquer semovente compreende que ele estava em condições de receber uma oficial de Justiça e assinar uma notificação. Afinal, seus médicos recomendaram que ele evitasse visitas e não que evitasse visitas apenas de oficiais de Justiça.

Mesmo assim, o ex-presidente mergulhou no vitimismo ao receber a visita da oficial. Transmitiu a entrega da intimação, comparando o Supremo Tribunal Federal ao nazismo e, por conseguinte, o ministro Alexandre de Moraes a Adolf Hitler. Usou a servidora pública como protagonista involuntária de uma peça de marketing pessoal em uma cena de humilhação, inclusive com berros à sua equipe, situação que não condiz com quem diz estar com a saúde debilitada.

Para um presidente que negou, por quatro anos, aumento real do salário mínimo a milhões de trabalhadores, não é surpreendente que humilhe uma trabalhadora, que cumpriu bem o seu dever legal.

Aliás, vale ressaltar como o bolsonarismo tem tropeçado em bons servidores públicos que não dobram sua espinha diante de quem fala grosso.

Após os servidores da Receita Federal no Aeroporto Internacional de Guarulhos fazerem seu trabalho e confiscarem um conjunto milionário de joias dados pelos governos árabes ao Brasil e que estava entrando de forma muquiada para ser entregue a Bolsonaro, o ainda presidente colocou o então responsável pelo órgão para pressionar seus subordinados. Eles não cederam.

Se não houvesse estabilidade funcional, qual seria o destino do servidor da Receita Federal Marco Antonio Santanna ao receber, em 29 de dezembro de 2023, a visita do primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira, incumbido por Jair Bolsonaro de tentar, pela última vez, retirar as joias que ficaram retidas em outubro do ano anterior, e se negar a entregá-las?

O sargento tentou colocar o servidor no telefone com um "coronel", coisa que ele não aceitou. Depois, recebeu ligação de Júlio César Gomes, que chefiava a Receita. Sem a garantia de que pudesse cumprir seu dever, Santanna poderia ter sido demitido e as joias estariam hoje no cofre de Michelle e Jair sem que ficássemos sabendo que outras foram surrupiadas.

O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional) disse em nota, naquela época, que o auditor que apreendeu as joias teve atuação exemplar. "Esse episódio revela, por um lado, que garantias constitucionais do funcionalismo público, por exemplo a estabilidade, bem como as prerrogativas específicas dos auditores fiscais, tornam possível o combate a ilícitos e constituem garantia à sociedade de que a lei será aplicada a todos, independentemente de cargos, funções ou poder", afirmou.

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Na mesma linha, o Sindicato Nacional dos Oficiais de Justiça Federais e a Associação Nacional União dos Oficiais de Justiça do Brasil soltaram uma nota conjunta, nesta quinta (24), afirmando que a oficial de Justiça "agiu com total observância da legalidade, estrito rigor técnico e absoluta imparcialidade, limitando-se ao cumprimento da ordem emanada da mais alta Corte do país".

"Diante disso, repudiamos de forma veemente a filmagem indevida e não autorizada e a divulgação sensacionalista e não consentida da atuação da oficial de Justiça, conduta que não apenas viola sua intimidade e honra funcional, como também busca distorcer os fatos e comprometer sua imagem perante a sociedade", dizem através da nota.

Quando Reforma Administrativa foi apresentada pelo governo Jair Bolsonaro, a defesa do fim da estabilidade foi colocada na mesa. Se ele tivesse sido reeleito, a independência de quem garante o cumprimento da lei seria uma das primeiras coisas a irem à forca.

Saiu uma nota do hospital, nesta quinta, dizendo que Bolsonaro piorou após o episódio. Não foi por conta da visita da oficial de Justiça, mas do fato de ele ter transformado seu quarto em escritório político e estúdio de TV.

O ex-presidente deveria estar assistindo episódios de "Last of Us", "Adolescência" ou "Succession" ou, quem sabe, ao filme "Conclave". Preferiu fazer política, mas de forma seletiva, atendendo o que lhe interessa e rejeitando o que lhe causa problema (ele ainda não havia sido notificado que se tornou réu). Assim, qualquer crítica que se faça ao STF ou ao trabalho da servidora é puro suco de hipocrisia.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL