Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O conceito gamer de “raid” é urgente no debate sobre liberdade de expressão
Se você é fã do mundo dos games, obviamente conhece o conceito de "raid" e tem uma vivência do mundo em redes. É urgente que o debate sobre liberdade de expressão no universo digital passe a entender esse conceito, intrincado na própria natureza da internet.
Temos visto ultimamente diversos esforços para enfrentar fake news, desinformação e discurso de ódio. O fato de não termos uma definição jurídica ou mesmo objetiva sobre os três conceitos obviamente prejudica os resultados.
Vivemos tempos em que cada vez mais aparece gente para defender a democracia e, ainda assim, cada vez mais a democracia parece ameaçada. Por que isso acontece? Segundo o V-Dem Institute, ligado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia, é porque boas intenções e boa vontade são insuficientes para salvar a democracia. Precisamos de ciência e eficiência.
O conceito de "raid", se analisado sob o ponto de vista da psicologia social e da moralidade, pode trazer avanços significativos na qualidade do debate sobre liberdade de expressão nas redes.
É uma pauta que padece do desconhecimento do funcionamento das redes. Os temas são tratados sempre sob o ponto de vista da divulgação de conteúdo como se estivéssemos falando de um artigo num jornal ou de uma transmissão de TV, com um emissor e vários consumidores da informação. Esse conceito, hoje, existe só nas nossas mentes analógicas. A realidade não funciona mais assim. Por isso as iniciativas que têm base nessa visão de mundo acabam não tendo o resultado esperado.
"Raids" são ataques necessariamente multiplayers, geralmente usados em situações críticas dos games. É quando vários players se unem mirando um único adversário ou um único obstáculo e, dessa forma, aumentam sua força exponencialmente. Se cada player fizer exatamente a mesma ação, mas de forma isolada, não conseguirá a força da união sincronizada, o "raid".
Esse conceito tem sido solenemente ignorado no debate sobre liberdade de expressão, mas é fundamental para que ele chegue a algum lugar.
Seres humanos são gregários, crescemos pela cooperação e pelo aprendizado social. Cada indivíduo tende a repetir comportamentos que são socialmente recompensados.
Uma criança pode chamar a atenção da coleguinha puxando o cabelo dela. Também pode chamar a atenção dividindo o lanche no recreio. O nosso aprendizado social rapidamente mostrará que puxar o cabelo gera atenção mas não sucesso. Dividir o lanche dará reciprocidade e popularidade no grupo.
Os algoritmos das redes sociais nos dão o aprendizado oposto. Como são desenhados para nos manter o máximo possível na plataforma, recompensam todo conteúdo que cause ódio, medo, raiva e revolta. Plugados o tempo todo nas redes, nosso aprendizado social muda.
É como se passássemos a aprender instintivamente que a recompensa social e a popularidade vêm de puxar o cabelo. Isso efetivamente acontece no caso dos "raids" em redes sociais. Você provavelmente já viu algum ou até já participou de algum sem perceber.
De forma justificada ou não, se elege um alvo. Um grupo de influencers parte de forma implacável para cima dele. Isso se dissemina em grupos de WhatsApp e às vezes chega até na imprensa tradicional. Quem "levantou o raid", ou seja, quem promoveu esse movimento, será recompensado pelo algoritmo com views, seguidores, likes e engajamento. No mundo real, isso significa dinheiro, prestígio e poder.
O problema é que o "raid", nos games, tem como único objetivo a destruição do alvo. E nas redes sociais também. Ele não é compatível com os conceitos de misericórdia, perdão e redenção, fundamentais para a cooperação que nos faz crescer como sociedade humana.
Nas redes, todo "raid" tem uma justificativa moral, moldada aos valores caros ao grupo. Pode ser o combate a um comunista ou um fascista, tanto faz. O importante disso é o pertencimento ao grupo, que está constantemente agindo como manada.
Vez ou outra agimos como manada na vida real, principalmente em situações de guerra. São momentos em que a força é do grupo e ninguém pensa individualmente. O mais importante é que são situações pontuais com objetivo específico. Agora vivemos o tempo todo assim, nas redes sociais.
O debate sobre liberdade de expressão analisa apenas conteúdos. O desabafo da dona Maria e o raid levantado por um grupo de influencers por interesse econômico têm sido classificados como iguais se as palavras usadas forem iguais. Ocorre que são diferentes.
Sem incorporar esse conceito, o debate sobre liberdade de expressão se faz apenas no plano imaginário, sem conexão com a realidade dos fatos. Estão sobrando boas intenções e boa vontade, precisamos urgentemente de ciência e eficiência.
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