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Maria Carolina Trevisan

REPORTAGEM

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Justiça juvenil: audiência virtual oculta tortura e violações, diz pesquisa

Adolescente estuda na Fundação Casa - Reinaldo Canato/UOL
Adolescente estuda na Fundação Casa Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Colunista do UOL

15/03/2022 14h15

As audiências virtuais, instituídas durante a pandemia para fazer funcionar o sistema de Justiça juvenil, podem facilitar a ocorrência de violações de direitos humanos, ocultar torturas e maus-tratos e limitar o direito a ampla defesa de adolescentes em conflito com a lei.

É o que mostra uma pesquisa inédita, que o UOL teve acesso com exclusividade, realizada pelo Coletivo Neide - Núcleo de Educação e Intervenção em Direitos Humanos, e encomendada pelo Instituto Alana. Foram estudadas as audiências por videoconferência em quatro unidades da federação, entre novembro de 2020 e junho de 2021.

O modelo virtual de apuração de atos infracionais de adolescentes foi implementado a partir de agosto de 2020 por meio de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A celeridade e a eficiência dessas audiências são fundamentais na garantia de direitos, ainda mais em um ambiente onde faltam vagas, em que não há ventilação adequada, o acesso à saúde é precário e o distanciamento social é limitado. Antes da pandemia, em setembro de 2019, último levantamento, havia mais de 18 mil adolescentes internados, enquanto o país dispunha de 16.161 vagas.

Com o arrefecimento da pandemia, a preocupação agora é que os ganhos do que foi implementado durante o período agudo de covid-19, como facilitar a participação de familiares que não podem se deslocar aos fóruns, sejam mantidos e as fragilidades que expuseram adolescentes em conflito com a lei a mais violações sejam banidas.

Problemas da audiência virtual

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante ao adolescente privado de liberdade que se encontre pessoalmente com um representante do Ministério Público e que possa falar reservadamente com seu defensor.

Esses parâmetros servem para a fiscalização de tortura e de maus-tratos, e para criar um ambiente seguro ao adolescente de modo que ele possa confiar e contar os fatos. Os encontros presenciais também são fundamentais para que os adolescentes e seus familiares tenham consciência e compreendam quais são os seus direitos e o passo a passo do processo.

"É difícil fiscalizar tortura ou ameaça por meio virtual", alerta a advogada e antropóloga Bruna Angotti, uma das coordenadoras da pesquisa. "Ainda que o juiz peça para ver virtualmente o ambiente, não é uma condição segura." Ela também aponta a falta de equipamentos adequados, como fones de ouvido, para que o adolescente possa denunciar violações sem se sentir intimidado, caso seu defensor pergunte.

O acesso desigual a internet e tecnologia é outro problema mostrado na pesquisa. Ocorreram chamadas ruins, câmeras mostraram apenas parte do rosto de adolescentes, houve dificuldades de escuta e falas interrompidas. "Muitas vezes era tão ruim a qualidade da chamada que o familiar, o adolescente ou outro ator deixava de interagir, prejudicando o processo", diz Bruna.

"Ainda não existe um protocolo comum, um padrão para todas as instituições do sistema socioeducativo. Esse protocolo seria um grande passo, caso as audiências virtuais sejam mantidas parcialmente."

Outro ponto de preocupação é a garantia do sigilo. As audiências com adolescentes ocorrem em segredo de Justiça. No modelo virtual, é mais difícil proteger de vazamentos de trechos da audiência. Também é mais complicado assegurar a incomunicabilidade entre as testemunhas que estiverem no mesmo ambiente. Isso pode prejudicar o direito a ampla defesa, um dos mais importantes em uma democracia.

Mas voltar ao presencial não é retroceder ao que eram as audiências antes da pandemia. Outras violações ocorriam, como por exemplo deixar os adolescentes muito tempo sem alimentação, a espera da audiência e sem entender as etapas de seus processos.

"Não estamos comparando um antes e um depois. Estamos olhando para o que aconteceu e apontando o que não pode mais ocorrer nos dois modelos. A audiência presencial é melhor, se observadas todas as garantias do ECA. Na ausência dessa opção, é necessário criar protocolos que garantam a participação efetiva de familiares, a incomunicabilidade das testemunhas, a privacidade do adolescente e a possibilidade de denúncia de violência", afirma a coordenadora da pesquisa.

Bruna alerta, ainda, que as fiscalizações nas unidades não podem ocorrer online. É importante sentir o ambiente, ver as pessoas e as condições em que vivem e trabalham.

Para a advogada do Instituto Alana, Ana Claudia Cifali, o formato virtual evidenciou e aprofundou problemas de acesso à Justiça que já ocorriam, como mostrou a pesquisa. Há agora a oportunidade de rever padrões, adequar necessidades e melhorar o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo.

Na Constituição brasileira, crianças e adolescentes são prioridade absoluta. Estado, sociedade civil e famílias são responsáveis por garantir direitos e proteção a todos.