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Superfaturamento e verba pública: como elite lucrou com abolição "precoce"

Ilustração da "Revista Ilustrada", de 1884, mostra a ideia abolicionista como uma mulher branca, que liberta um homem negro; no entanto, elites que posaram de progressista lucraram com fim "precoce" da escravidão - Reprodução/Revista Ilustrada, edição 376, 1884
Ilustração da "Revista Ilustrada", de 1884, mostra a ideia abolicionista como uma mulher branca, que liberta um homem negro; no entanto, elites que posaram de progressista lucraram com fim "precoce" da escravidão Imagem: Reprodução/Revista Ilustrada, edição 376, 1884

Colunista do UOL

20/07/2022 04h00

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Com direito a cerimônias de júbilo e entusiasmados registros na imprensa, o dia 10 de julho de 1884 já foi muito festejado no Amazonas. Hoje parece mais um fato pitoresco que ainda pode causar certa surpresa porque foi nessa data que a província do Amazonas colocou um fim à escravização de pessoas negras em seu território. No entanto, as festas escondiam uma estratégia da elite para lustrar sua imagem de "abolicionista" ao mesmo tempo em que superfaturava as alforrias de escravizados pagas com dinheiro público.

Vamos colocar as coisas em perspectiva. O Amazonas não foi a única província do Império nessa condição. Em março daquele mesmo ano, o Ceará havia tomado medida semelhante e, em setembro, foi a vez do Rio Grande do Sul. Desde 1883, algumas cidades tinham feito o mesmo: Redenção, no Ceará; Mossoró, no Rio Grande do Norte e, por fim, Benevides, no Pará.

Nessas regiões, a escravidão não tinha o mesmo peso demográfico e tampouco se constituia na centralidade das economias locais, em comparação com outros lugares. Contudo, isso não esgota a questão. Estamos lidando com um império escravista e, independentemente do lugar, os senhores eram bem comprometidos na defesa de suas propriedades e privilégios.

A década de 1880 foi agitada em favor das campanhas pelo fim da escravidão no Brasil e, como se pode perceber, os movimentos antiescravidão não tinham o Rio de Janeiro como seu único ponto de origem. O abolicionismo era um expressivo movimento de massas em intensa articulação, como destacam vários historiadores. Estes movimentos sociais defendiam o fim da escravidão de diferentes maneiras. Para além de sua capacidade de mobilização política, é importante analisar outras dinâmicas históricas que iluminam os processos do que, inadequadamente, tem sido chamado de "abolição precoce".

O atributo da "precocidade" de tais movimentos abolicionistas - aparentemente bem-sucedidos - possui problemas analíticos. O primeiro deles é o fato de que subordina tais iniciativas à cronologia das ações da Corte do Império. Nunca é demais lembrar que, em vários outros países, já se havia extinguido a escravidão nesse momento. Isso era fato bem conhecido. De certo modo, isso é o que nós, historiadores, chamamos de "argumento teleológico", ou seja, quando um raciocínio se sustenta na ideia - falsa - de que uma coisa vai acontecer necessariamente só porque a gente já sabe que outra aconteceu. Só chamam de 'precoce' as narrativas que tomam 1888 como marco, já quem em 1884 não se sabia que o 13 de maio aconteceria. Nós sabemos. Eles, não.

Retomando o argumento, talvez a pergunta mais apropriada a fazer seria " como foi possível que essas localidades tomassem medidas para encerrar a escravidão antes que o Império o fizesse?"

A Constituição de 1824 permitia, às províncias, certa autonomia para legislar sobre questões muito variadas. Essas possibilidades legais foram acionadas em favor da ampliação de alforrias e do aumento da carga tributária relativa às movimentações comerciais de escravizados via tráfico interprovincial. Essas medidas comprometiam, de algum modo, o funcionamento das operações da escravidão. Para explicar isso, vamos tomar a experiência do Amazonas para demonstrar o que foi feito. Não houve, formalmente, uma "abolição da escravidão"; isso só aconteceu em 13 de maio de 1888.

O que ocorreu foi que a Assembleia Legislativa amazonense, como já vinha fazendo desde 1869, aprovou a ampliação dos valores orçamentários, dessa vez bem mais expressivos, para a aquisição das alforrias por meio do Fundo de Emancipação, aprovado por lei imperial de 1871, a lei que ficou conhecida como Lei do Ventre Livre. Na prática, isso significava aumentar o número de pessoas escravizadas que teriam alforrias subsidiadas pelos cofres públicos.

A lei amazonense foi aprovada em uma sessão festiva, ocorrida em 24 de abril de 1884, chamada de "Sessão Áurea". Teve direito até a pena de ouro usada em seus registros. Isso seria uma antecipação dos ícones consagrados em 1888? Certamente que não. Era só o uso reiterado de elementos simbólicos comuns e com significados compartilhados no período. Em 10 de julho, o presidente da província, o cearense Theodoreto Souto, anunciou em praça pública, o fim da escravidão com a "Declaração de Igualdade de Direito dos Habitantes".

Para que tudo funcionasse, cumpridas as recomendações da lei de 1871, iniciava o trabalho das juntas locais classificadoras, responsáveis pela verificação dos requisitos legais para saber se aqueles escravizados estavam incluídos entre os beneficiados pela alforria que era paga com recurso públicos ( do Império e da Província) e também pelo pecúlio, uma espécie de poupança dos homens e mulheres escravizados, dentro dos valores arbitrados pelas juntas.

áurea - Abner Ismael Bento/Domínio Público - Abner Ismael Bento/Domínio Público
Celebração da assinatura da Lei Áurea em frente ao Paço Imperial, em 1888
Imagem: Abner Ismael Bento/Domínio Público

Liberdade comprada, e proprietários indenizados

São muitas as evidências de fraudes nesses processos. O mais comum era a supervalorização do preço final a ser pago pela alforria. O denso estudo de Provino Pozza Neto conclui que os valores pagos aos proprietários no Amazonas estavam entre os 5 maiores do país. Importa lembrar que a província possuía a menor população escravizada de todo o Império, mas foi onde o pecúlio escravo teve a maior representatividade percentual na composição do valor a ser pago aos senhores no momento da alforria. A segunda província nessa condição foi o Rio Grande do Sul.

Curioso que o valor pago aos ex-proprietários fosse tão alto já que um dos argumentos para justificar a "abolição precoce" do Amazonas, e nos outros lugares que indicamos, era o vigor do "sentimento abolicionista" de suas elites que se engajaram na causa. Até fundaram clubes emancipadores beneficentes que angariavam recursos e, costuma-se dizer, concediam alforrias gratuitas movidos por seus sentimentos humanitários. Os números das alforrias registradas nos cartórios de Manaus, no entanto, contam histórias diferentes. Mais de 61% das alforrias concedidas foram "onerosas", ou seja, foram pagas e "condicionais", porque esses homens e mulheres, recém libertos, eram obrigados a continuar a servir seus ex-senhores pelo resto de suas vidas. Como diz Pozza Neto, alguns senhores foram bem indenizados nesse processo.

Isso também aconteceu no Ceará. Eurípedes Funes chama nossa atenção para o crescimento do número de "criados de servir e agregados" em Fortaleza, em 1887, 3 anos depois da "abolição" naquela província. A pesquisa de Eylo Rodrigues revela casos impressionantes do Livro de Matrículas de Criados, como o de Eugênia Joaquina da Conceição, registrada por seu antigo proprietário como "minha ex-escrava, continua a residir na minha casa, como criada, gratuitamente, por tempo indeterminado".

Tais casos não eram incomuns como mostra a experiência no Rio Grande do Sul, onde também houve uma "abolição condicionada". Libertos e libertas continuavam com a obrigação de prestar serviços por meio de contratos de longa duração. Como diz Bruna Krob, a figura do "contratado", como ficou conhecido o liberto naquela província, foi silenciada em nome de uma narrativa que dá precedência à "abolição antecipada".

O que há de comum nessas narrativas pioneiras nos três cantos do país? A liberdade como dádiva senhorial, algo muito explorado nas imagens que circularam sobre tais episódios. Tais ações não se pautaram, exclusivamente, pelo "sentimento abolicionista" dessas regiões, em que a liberdade de escravizados foi adotada com mais "urgência". Isso, como vimos, estava bem distante da realidade, além de apagar o protagonismo de agentes históricos negros na construção dos caminhos da liberdade.

Um exemplo relevante é a importância do pecúlio escravo no Amazonas e no Rio Grande do Sul na composição dos valores pagos pelas alforrias. Isso diz muito sobre agência de escravizados constituindo suas próprias estratégias de (re) existência ainda que em contexto subordinado. Ainda estamos arranhando a superfície das investigações acerca da presença de negros e negras na construção do movimento abolicionista em suas diferentes modalidades de organização (clubes, jornais).

O vigor dessas organizações no Rio Grande do Sul, especialmente nos anos de 1880, nos deixa em alerta para pensar outras possibilidades de elaboração dessas narrativas e o quanto ainda temos a investigar nesse campo. Quanto às elites, parecem ter repetido um roteiro já conhecido: no caso do Amazonas, por exemplo, quem ficou com boa parte dos escravizados foram os novos ricos da economia da borracha. Pesquisas feitas com inventários mostram que, a partir de 1880, as famílias tradicionais amazonenses foram perspicazes em passar adiante uma "propriedade' em desvalorização e ainda conseguiram "polir' suas imagens públicas passando à história como grandes progressistas e abolicionistas.