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Presença Histórica

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

De "o mundo está chato" ao "mimimi": racismo aumentou ou Brasil mudou?

 Torcedor do Corinthians com faixa "Racismo até quando?" durante partida entre Corinthians e Fortaleza na Neo Química Arena - Ettore Chiereguini/AGIF
Torcedor do Corinthians com faixa 'Racismo até quando?' durante partida entre Corinthians e Fortaleza na Neo Química Arena Imagem: Ettore Chiereguini/AGIF

Colunista do UOL

06/07/2022 04h00

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Imagine a cena: alguém com olhar distante ou expressão irritada, pensando ou verbalizando a plenos pulmões "Por que não posso mais chamar ele de neguinho?" Ainda que eu seja professora, minha intenção aqui não é tão somente exercitar aquilo que é próprio da sala de aula, ou seja, compartilhar saberes. Mas convidar a uma reflexão: "o mundo está chato?" ou "o politicamente correto está cerceando a forma de falar, de brincar e de agir?"

Nosso ponto de partida, no entanto, não é apenas o presente, mas um questionamento: como chegamos até aqui? Para entender porque o mundo não está "ficando chato", é preciso entender que estamos no meio de um longo processo de embate legal contra o racismo. E a história ajuda a explicar isso. Ainda que a escravidão tenha sido extinta no Brasil em 1888 e que as denúncias de preconceito de cor, como era denominado na época, fossem uma constante, somente em 1951 conseguiu-se aprovar uma lei antidiscriminatória. No último domingo, 03 de julho, completaram-se 71 anos deste feito.

Pela primeira vez o código brasileiro incluiu "entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de côr". Tratava-se da Lei conhecida como Afonso Arinos (nº1390/1951). Sancionada pelo presidente Getúlio Vargas, ela nos oferece um importante exemplo de como assuntos relacionados à raça e ao racismo são conduzidos no Brasil a partir de uma constante tensão. Nesta luta estão presentes diferentes grupos dos movimentos sociais negros que tentam colocar abaixo a lógica do silêncio presente em toda a história da nação e que faz a população negra ocupar lugares sociais pré-determinados.

Resultado de discussões anteriores, principalmente do acúmulo advindo das discussões da Convenção Nacional do Negro Brasileiro como preparação para a Assembleia Constituinte, de 1946. A Convenção ocorreu no Rio de Janeiro e em São Paulo, nos anos de 1945 e 1946 e foi organizada por diferentes grupos negros e lideranças negras e não negras, do Espírito Santo, São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais. Deste encontro resultou o Manifesto à Nação Brasileira que, dentre outras reivindicações, pretendia que a Carta Magna a ser promulgada no ano seguinte incluísse o seguinte trecho:

Que torne matéria de lei, na forma de crime de lesa-pátria, o preconceito de cor e de raça.
Que se torne matéria de lei penal o crime praticado nas bases do preconceito acima [...]".


A proposta chegou na Constituinte por meio do senador Hamilton Nogueira, da UDN. Porém, um companheiro de partido muito bem-quisto pelas elites intelectuais quando o assunto eram relações raciais no Brasil, foi contrário à proposta. Tratava-se do sociólogo Gilberto Freyre. Ele não era só defensor da ideia de democracia racial, mas também da ética do silêncio que se sobrepunha ao pleno conhecimento das desigualdades raciais. Sua posição encontrou aliados na esquerda. O PCB entendia que se fazia necessário manter o foco nas desigualdades de classe e não nas de raça.

Assim, o projeto de uma lei antidiscriminatória não foi adiante. Com os tantos casos de discriminação racial que se seguiram, a lei Afonso Arinos foi aprovada em 1951. Por tratar estas situações como contravenção, foi considerada fraca por muitos, ainda que tivesse transformado em lei a demanda de muitos movimentos.

A luta não esmoreceu. Dividiu-se entre fazer com que a lei fosse cumprida e criminalizar o racismo de forma mais severa. Com a reabertura democrática, em meio à discussão em torno da Constituinte, ocorreu uma nova Convenção Nacional do Negro, em 1986. Realizada em Brasília e contando com representantes de diferentes estados da federação, foi organizada pelo Movimento Negro Unificado.

convenção - Acervo pessoal de Maria Luiza Junior/Google Culture and Arts - Acervo pessoal de Maria Luiza Junior/Google Culture and Arts
Maria Luiza Júnior, Carlos Moura, Hélio Santos, Milton Barbosa e Januário Garcia na Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, realizada em Brasília, em 27 agosto de 1986
Imagem: Acervo pessoal de Maria Luiza Junior/Google Culture and Arts

Pesquisas acadêmicas realizadas recentemente tanto na área da história quanto na do direito, como as desenvolvidas por Amilcar Pereira, Thula Pires e Natália Neris entre outros evidenciam a importância da atuação dos movimentos sociais negros na construção da democracia brasileira e, consequentemente, na percepção que temos acerca dos significados do racismo. Da Convenção de 1986 saíram algumas diretrizes que seguem presentes na sociedade. destaco aquela que foi incorporada com pequenas modificações no Art. 5º de nossa Constituição:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça, como crime inafiançável, com pena de reclusão e para o referido processo o rito sumaríssimo."

Muitas das demandas dos movimentos sociais foram levadas para a Assembleia Constituiente por pelo menos quatro deputados negros: Edmilson Valentim (PCdoB-RJ), Carlos Alberto Caó Oliveira dos Santos (PDT-RJ), Paulo Paim (PT-RS) e Benedita da Silva (PT-RJ). A presença deles resultou na Lei nº 7.716/1989, que passou a punir como crimes os casos de preconceito de raça e de cor.. E, não encerrou-se por aí, mais de duas décadas depois, mais precisamente em 2010 o deputado Paulo Paim viu seu projeto de lei intitulado "Estatuto da Igualdade Racial", que dava sequência a muitas das demandas daquela Convenção de 1986, ser sancionado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva por meio da Lei nº. 12.288/2010.

***

As leis certamente são catalisadoras, sinal dos tempos. Mas não podemos esquecer de seu par: a mentalidade. É ela que apresenta transformações geralmente de forma gradual e, ainda que lentamente, desemboca na luta, que move a criação das leis. Neste processo é preciso que as pessoas se conscientizem do que as leis pretendem ensinar. Mais que apresentar uma breve genealogia das leis que versam sobre o racismo, busquei evidenciar que a compreensão sobre racismo se alterou ao longo do tempo. Isso é perceptível também na linguagem, nos gestos e nas ações cotidianas.

Dados recentemente divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública enfatizam o crescimento de denúncias de crimes raciais. Foram 1.429 denúncias em 2018, passaram a ser 6.003 em 2021, estando o estado do RS a frente nos casos de racismo, com 4.132 registros. O racismo bem pode ter se incrementado, mas sem as leis e a consciência das pessoas acerca do entendimento de seus direitos sequer chegaríamos a esses números. Então é válido afirmar que não é que "o mundo está chato", foi a percepção a respeito da desigualdade que mudou e certamente veio para ficar. Não foi repentino.

Por fim, espero ter provocado ainda a reflexão sobre o falso dilema com que lidamos na sociedade brasileira. Há uma contradição latente entre ora acharmos que a solução é transformar algo em lei, pois assim tudo irá funcionar, ora nos depararmos com a ideia de que as leis simplesmente não funcionam. O direito, ou seja, a sua normatização e formalização das leis no campo jurídico, é a expressão de projetos em disputa. É constituído por negociações constantes.

O exercício sistemático para as leis serem cumpridas também é um marco de que as tensões e a mobilização política que fez esse disciplinamento alcançar o mundo jurídico continua vivo na sociedade. Sim, a lei pega! E se a lei pega é porque o seu substrato está na sociedade, está em nós, naquelas e naqueles que entendemos que o mundo não está chato. Ele está em plena transformação. Quiçá para melhor.