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Quilombolas tentam barrar crise ambiental no '1° território iorubá' do país

Cerimônia que reconhecou o quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas, como primeiro Território Iorubá do Brasil. - Lucas Lins/Prefeitura Lauro de Freitas
Cerimônia que reconhecou o quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas, como primeiro Território Iorubá do Brasil. Imagem: Lucas Lins/Prefeitura Lauro de Freitas

Colunista do UOL

19/04/2023 04h00

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Festejar o direito de lutar
Lutar pelo direito de festejar
Racionais Mc

Abril é tempo de festa no quilombo. É o mês de louvar Benedito, o santo protetor da comunidade do Quilombo Urbano do Barranco, localizado na Praça 14 de Janeiro, em Manaus (AM). No domingo (16), terminou o ciclo de novenas, fez-se a procissão e o mastro foi derrubado. Estamos diante de ritos de profunda devoção que se repetem há 133 anos, resultantes de diferentes matrizes religiosas. Na verdade, é uma longeva festa quilombola que se celebra na mais populosa capital do Norte do Brasil. A Fundação Cultural Palmares (FCP) reconheceu oficialmente a comunidade do Barranco do Santo Benedito em 2014.

Mas, antes, em 19 de março, também houve festa em outro quilombo. Uma celebração especial onde a comunidade Quingoma, do município de Lauro de Freitas, na Bahia, recebeu o título de "primeiro território Iorubá do Brasil", conferido pelo rei da Nigéria, Ooni Ilê Ifé. Repleta de simbolismos, a cerimônia incluiu o plantio de uma árvore pelo rei para marcar a memória do dia para as futuras gerações. Autoridades civis e religiosas registraram a importância do título e a relevância dos territórios quilombolas como expressão da luta ancestral pelo direito de existir com dignidade.

Um olhar mais desatento pode não enxergar, mas festa também é expressão de luta. E, em se tratando de comunidades quilombolas, um tempo pode se misturar e se confundir com o outro. Essas dimensões relativas às temporalidades peculiares das comunidades quilombolas já receberam atenção dos pesquisadores e pesquisadoras desse tema crucial para entendimento da sociedade brasileira.

Nesse sentido, é rico o trabalho do historiador Eurípedes Funes, autor da tese pioneira defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 1995, transformada em livro em 2022: "Nasci nas matas, nunca tive senhor: história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas".

Seu autor estudou a famosa região mocambeira, no Pará, analisando comunidades longevas, com histórias complexas de ocupação da terra e que elaboraram sofisticados sistemas de manejo de seus territórios.

Funes destacou, entre outras questões centrais para compreensão das comunidades quilombolas, a importância das festas para consolidação de laços identitários e como tais conexões se refletiam na construção das diferentes formas de lutas por direitos. Um exemplo é a antiga festa do Marambiré, no Quilombo do Pacoval, uma congada que continua a ancorar identidades, fortalecer ancestralidades e apontar projetos de futuro.

Celebrar é, portanto, parte das experiências quilombolas e que se traduz nas mais diversas modalidades de lutas por direitos. O Quilombo do Barranco atravessou décadas de invisibilidade e desqualificação racista na cidade. As memórias da comunidade abundam nesse sentido.

A luta pela manutenção da festa do Benedito pelas famílias que se constituem nos referenciais da comunidade foi essencial para sustentar os embates antirracistas, para sua coesão como coletividade, para seu reconhecimento oficial como comunidade quilombola e Patrimônio Imaterial do Amazonas, em 2015.

Passou despercebido para muitos que a festejada concessão do rei da Nigéria à comunidade de Quingoma ocorreu, ao mesmo tempo em que tramitava uma Ação Civil Pública (ACP), por meio do Ministério Público Federal (MPF), para defender seus territórios. Iniciada em 2022, trata de uma luta histórica da comunidade que remonta aos séculos 18 e 19 e que se constituiu com pessoas negras e indígenas.

Alvo de incontáveis pressões da crescente especulação imobiliária e de projetos de intervenção estatais (hidrovias, rodovias e complexos portuários), moradores e moradoras do Quingoma têm experimentado impactos ambientais que alteram os ciclos de reprodução da fauna e da flora, assoreamento de rios, desertificação, invasões, poluição, entre outros males, que redundam em precarização sistemática da vida.

Mesmo reconhecida pela FCP (Fundação Cultural Palmares) em 2013, o processo de regularização das terras do Quingoma ainda está inconcluso. A luta não terminou. E parece longe de terminar. A ACP é mais uma estratégia, entre as inúmeras formas de enfrentamento, que a comunidade vem elaborando ao longo de sua trajetória.

Ainda assim, a celebração continua a fazer sentido na vida do quilombo. O grupo Samba de Roda Renascer do Quingoma não deixa esse fio se perder. Nem suas relações com o território, nem com as trajetórias dos grupos familiares que lhes são ancestrais. Sempre é tempo de luta no quilombo.

Como se vê, trata-se de uma questão que não se resume à população negra ou indígena. Como lembrou o historiador Flávio Gomes, um especialista no tema, em entrevista à Folha de São Paulo, os quilombos precisam ser vistos como partes inseparáveis da questão agrária brasileira: "o reconhecimento dessas comunidades significaria um repensar sobre a estrutura fundiária." A constatação de Gomes retoma o que, há algumas décadas, vem sendo dito por tantos e tantas que se debruçam sobre os mundos quilombolas.

Mas há algo mais a ser lembrado. Ana Lúcia dos Santos, educadora popular, agricultora e liderança religiosa do Quingoma, em 2021, falou acerca da importância de uma jaqueira plantada no território sobre as cinzas de um ancestral para lembrar um massacre feito por latifundiários da região no século 19. Além da âncora de memória, ela também representa a sombra da proteção dos antepassados. Árvores são mesmo chaves de lembrança de festa e de luta no Quingoma.

Ana dos Santos também não deixa esquecer as histórias de luta do povo negro, contadas pela avó Benedita, enquanto lhe trançava os cabelos. Aqui, é impossível não recuperar o belo livro da historiadora Mariléa Almeida, "Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas das mulheres quilombolas", que nos restitui uma dimensão frequentemente ignorada: o lugar central das mulheres quilombolas na constituição das existências e das resistências que envolvem questões relacionadas à "ética do cuidado de si, do outro e do espaço onde se vive".

No Quingoma e no Barranco, com a associação "Crioulas do Quilombo", organização das mulheres responsáveis pela condução das lutas na comunidade, há que se reconhecer a existência de um "devir quilomba", uma chave essencial para reconhecimento de possibilidades de enfrentamento que ultrapassam estereótipos cristalizados.

Mulheres quilombolas são responsáveis pela sustentação dos caminhos que nos trouxeram até aqui e esse novo olhar ajuda a dar visibilidade a protagonistas normalmente ignoradas nessa guerra sem fim. Uma guerra travada pela existência digna com a manutenção de todos os afetos que dão sentido às nossas vidas. Isso vale a festa e a luta!