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Benedita, Carolina, Lélia: as disputas pela memória contra a barbárie

O mês em que são rememorados o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial (3 de julho) e o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha (25 de julho), além da participação de mulheres e homens negras e negros na Independência da Bahia (o celebrado 2 de Julho), teve seu início marcado por acontecimentos que repercutem intensamente nos debates públicos, assinalando a efervescência contemporânea dos embates pela garantia de direitos à dignidade humana no Brasil - uma luta histórica que, também e cada vez mais, é caracterizada pelas disputas de narrativas, inclusive no campo da memória e da história pública.

Em um desses casos, o suposto lapso da deputada federal Carla Zambelli, chamando a também deputada federal Benedita da Silva de "Chica da Silva" tem acendido o debate sobre a natureza do racismo no Brasil.

No episódio, o "ato falho" de Zambelli revela muito de um inconsciente nada reprimido, de acordo com o qual o desrespeito ao direito às identidades das pessoas negras é a ponta de um iceberg fundamentado na desumanização dessas pessoas.

"Confundir" os nomes de duas mulheres negras fortes e atuantes na história do país não pode ser naturalizado como "homenagem" a uma delas, neste caso - especialmente considerando-se sujeito e contexto do lapso freudiano em questão.

Já nas semanas anteriores, as celebrações das festividades do São João - que, especialmente no Nordeste do país, têm profunda aderência da população - foram alvo de ignorância e intolerância religiosa, em vídeos que viralizaram nas redes sociais.

Em um deles, uma influencer evangélica proíbe a filha de participar da festa em sua escola, pois trataria-se de um ritual de comemoração à "morte do amigo de Jesus", João Batista. Na verdade, a Igreja Católica celebra no dia 24 de junho o nascimento do santo.

Em outro vídeo, uma professora de educação física da rede pública de educação infantil e ensino fundamental, em entrevista informal, exorta os cristãos a "fugirem da aparência do mal", manifesto nas festas juninas, que serviriam à adoração consciente ou inconsciente dos três santos - São João, Santo Antônio e São Pedro -, por meio da dança e dos alimentos que estariam a eles "consagrados".

Demonstrando noção equivocada do que seja cultura, ela defende que se deveria trabalhar a festa junina "apenas como [algo] cultural", excluindo o que é o aspecto religioso, que ela desqualifica como "idolatria".

Dos debates em torno dos dois vídeos destacaram-se as críticas aos "absurdos" que eles expressam, demonstrando que o perigo da propagação destas posturas, que beiram o limite do inconstitucional - o desrespeito à liberdade religiosa assegurada como direito de todos em 1988 -, não é recebido com indiferença pela sociedade.

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Memórias insubordinadas

Neste cenário de incessantes ameaças a direitos arduamente instituídos via fundamental participação de pessoas e coletividades negras e indígenas neste país, é importante celebrar conquistas que evidenciam as lutas pela memória como campo estratégico de construção de futuros de dignidade e justiça social.

Em Belo Horizonte, os últimos dias de junho foram festejados com homenagens importantes a intelectuais negras e negros mineiros, cujas existências e atuações têm sido fundamentais para as práticas antirracistas no país.

No dia 25 de junho, o multiartista Ricardo Aleixo foi reconhecido como membro na AML (Academia Mineira de Letras), em cerimônia que reuniu, em um espaço tradicionalmente embranquecido, localizado à Rua da Bahia, representantes das comunidades negras da cidade e do estado. A presença do novo imortal nesse lugar de reconhecimento público significativo soma-se às da escritora Conceição Evaristo e do filósofo e ambientalista Ailton Krenak, que recentemente passaram a integrar a AML.

No dia 29 de junho, 25 representantes de comunidades tradicionais receberam o 6º Prêmio Mestres e Mestras da Cultura Popular de Belo Horizonte, ação que integra a política pública de patrimônio cultural desenvolvida pela Diretoria de Patrimônio Cultural da Prefeitura Municipal.

O Prêmio, para cada contemplado, consistiu em um valor de R$15 mil e uma obra criada pelo artista Jorge dos Anjos, inspirado na representação de Oxalá, evocando a simbologia do equilíbrio, da paz, harmonia e sabedoria dos Mestres e Mestras.

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A maioria das pessoas premiadas é integrante de grupos e comunidades de matriz africana, o que representa uma atuação do poder público comprometido com o cumprimento de seu papel de fomento ao respeito à diversidade cultural e, em especial, aos grupos mais vulnerabilizados pelo racismo religioso.

Finalmente, a manhã do domingo, 30 de junho, acolheu um público especial e ansioso pela inauguração de monumentos que marcam uma justa homenagem a outras duas mulheres negras mineiras fundamentais para a história contemporânea do Brasil, cujas vidas seguem ecoando e reafirmando o direito ancestral à existência digna para as populações negras.

A escritora Carolina Maria de Jesus (1914 - 1977) e a filósofa e ativista Lélia Gonzalez (1935 - 1994) foram imortalizadas também em duas esculturas em bronze, de tamanho real, instaladas sob uma árvore igualmente monumental, em frente ao Teatro Municipal Francisco Nunes, no Parque Municipal Américo Renné Giannetti, situado na região central da cidade e muito frequentado por públicos diversos.

Estavam presentes familiares das duas homenageadas e congraçadas na cerimônia que celebrou, afetivamente, as ancestralidades africanas que se dinamizam nas memórias de Lélia e Carolina.

Esta importante iniciativa é da jornalista, ativista dos movimentos negros, mestra e doutoranda em comunicação Etiene Martins, construída em parceria com Jozeli Rosa e viabilizadas por meio de emenda parlamentar do mandato da deputada estadual Bella Gonçalves. As esculturas, obras do artista Léo Santana, integram, a partir de então, o Circuito Literário de Belo Horizonte, e são as primeiras estátuas de mulheres negras da cidade.

O estabelecimento de lugares de memória como estes, tanto o reconhecimento de Ricardo Aleixo na Academia Mineira de Letras, quanto o de mestras e mestres da cultura popular, quanto o de Lélia e Carolina, representadas em monumento público; são feitos que não dizem respeito apenas à capital mineira.

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Eles fortalecem esforços de produção de memória fundamentais na contranarrativa às práticas hegemônicas de produção de esquecimento que alimentam os projetos de eliminação simbólica e física das gentes negras e indígenas brasileiras.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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