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Presença Histórica

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Justiça pela morte de Miguel é garantia de futuro às crianças negras

Mirtes Renata Santana, mãe de Miguel Otávio Santana da Silva - JÚLIO GOMES/LEIAJÁIMAGENS/ESTADÃO CONTEÚDO
Mirtes Renata Santana, mãe de Miguel Otávio Santana da Silva Imagem: JÚLIO GOMES/LEIAJÁIMAGENS/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

09/06/2023 04h00

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Recordar, repetir e elaborar, texto escrito por Freud em 1914, analisa a necessidade psíquica de elaborar sobre o passado para lidar com sofrimentos que se expressam no presente. Um evento traumático, quando não é nomeado, atualiza-se por meio dos sintomas, retornando de forma nefasta.

Na aproximação entre a história e a psicanálise, o fazer historiográfico tem o potencial de produzir narrativas que possibilitam processos coletivos de simbolização e de reparação, condições para seguir em frente e reinventar o futuro. Levando em consideração que o Brasil é um país de tradição escravocrata, cujos efeitos do racismo foram silenciados pela consolidação do mito da democracia racial, é incontornável escavar histórias silenciadas. Somos especialistas na produção de esquecimentos, mesmo quando os acontecimentos são recentes.

Há três anos, no dia 2 de junho, choramos a morte de Miguel. À época, sua mãe Mirtes Renata Santana era trabalhadora doméstica na casa de Sarí Gaspar Corte Real. Naquele dia, Mirtes precisou levar o menino para o trabalho porque, em função da pandemia, a creche estava fechada. Vale dizer que no estado de Pernambuco o trabalho doméstico já havia sido definido como serviço não essencial. Porém, para não perder o emprego, Mirtes foi trabalhar. Naquele dia, ela foi incumbida de passear com o cachorro, enquanto Sari fazia as unhas. Miguel ficou aos cuidados da dona da casa.

Ocorre que quando o menino chorou pedindo pela mãe, Sarí, sem paciência, colocou a criança de 5 anos sozinha no elevador e apertou o botão do nono andar. Miguel chegou a uma área de maquinaria, caindo de uma altura de mais de 35 metros. Não podemos esquecer os detalhes nefastos dessa história porque ela informa muitíssimo sobre o Brasil. As camadas que recobrem esse acontecimento estão relacionadas à naturalização do racismo.

De certa forma, ela atualiza a tradição histórica de que crianças negras não são vistas como crianças. No período escravocrata, elas tentavam sobreviver sem poderem desfrutar da proteção familiar. Ainda quando estavam com suas famílias, não era possível obter os benefícios dessa situação, já que seus corpos eram tomados como mercadorias e forças de trabalho. Inúmeras delas não puderam ser amamentadas por suas mães, pois muitas mulheres escravizadas eram amas de leite de crianças brancas. Historicamente, uma criança negra não tem direito à infância. O que traz ressonâncias não apenas para pessoas negras, mas para toda sociedade.

Não por acaso, a morte de Miguel favoreceu que várias pessoas negras lembrassem de experiências racistas ocorridas na infância, criando a hashtag #RacismoNainfância.

Como fontes históricas, essas narrativas precisam circular para lembrarmos que o inaceitável é praticado, enquanto muitas pessoas brancas estão ocupadas fazendo unhas, praticando ioga três vezes por semana, fazendo mindfulness e, é claro, o mais importante: mantendo a terapia em dia. Ninguém tem tempo para trabalhar os efeitos do racismo sobre suas vidas, já que o racismo continua sendo visto como um problema dos negros. O tragico é que quando o recalcado retorna, ele coloca em risco corpos negros.

Em 2022, Sarí foi condenada a 8 anos e seis meses de prisão por abandono de incapaz, contudo responde ao processo em liberdade. Mirtes exige justiça, porque sem ela o futuro de todas as crianças negras permanece ameaçado.