'Por qualquer meio, mantenha-se vivo!': 1º desafio dos negros é envelhecer
Uma rápida pesquisa online utilizando o termo de busca "homens negros" revela manchetes como "Taxa de homicídio de homens negros no Brasil é quase 4 vezes maior do que a de não negros, aponta estudo"; "Homens negros são principais vítimas da violência armada no Brasil", "Homens negros têm 3,5 vezes mais chances de serem assassinados do que brancos, revela pesquisa"; "Homens negros são quase 90% das vítimas de arma de fogo no Brasil, aponta estudo", "Negros são 75% dos mortos pela polícia no Brasil, aponta relatório". Tratam-se de notícias veiculadas nos últimos anos. Contudo, a realidade incômoda e dolorosa perdura há muito.
Em 2013, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgava nota técnica intitulada "Vidas perdidas e racismo no Brasil", em que os pesquisadores Daniel R. C. Cerqueira e Rodrigo Leandro de Moura atestam: "O racismo faz aumentar a vitimação violenta das populações negras", sobremaneira dos homens. No estudo, são analisados dados do IBGE 2010 sobre letalidade violenta no Brasil, aplicando-se métodos econométricos, a partir dos quais os autores observam, ainda, que as mortes violentas geram perda de maior expectativa de vida ao nascer para homens, sendo dentre estes os mais afetados os homens negros.
Eco insistente da escravidão, atualizando hábil e constantemente o agravamento da interdição à vida das populações historicamente indesejadas no país - aquelas que, contrariando os projetos de branqueamento em vigor do advento da Abolição às primeiras décadas do século 20, seguem buscando forjar a garantia do seu direito à vida.
Sob o lema "Nossos mortos têm voz", o Movimento Mães de Maio luta ininterruptamente, há 17 anos, pela responsabilização do governo do estado de São Paulo pela chacina perpetrada pela Polícia Militar que, em 2006, dizimou a vida de cerca de 500 pessoas, muitas das quais jovens negros e periféricos.
A persistência do movimento evidencia que a contestação da banalização social das inúmeras vidas perdidas - e que passam a figurar, sem comoção social, nas estatísticas -, se dá, historicamente, pela voz e pela ação política cotidiana de mulheres negras. É a elas, em grande medida, inclusive, que se devem os avanços - ainda que incipientes dada a força dos poderes hegemônicos - na direção da construção de políticas públicas que possibilitem reverter a naturalização da necropolítica que tem como "público-alvo" preferencial as vidas negras e indígenas.
Passos que 'vêm de longe'
"Por qualquer meio, mantenha-se vivo!" É o que costuma dizer às diferentes gerações de jovens negros Sueli Carneiro, ativista antirracismo, filósofa e fundadora do Geledés - Instituto da Mulher Negra. No filme "Quantos Dias, Quantas Noites", ela segue declarando: "Não tem nenhuma guerra em curso no mundo que mate mais que o Brasil mata jovens negros anualmente. O primeiro direito ameaçado que nós temos é o direito à vida. O desafio das pessoas negras não é os terrores da velhice. É chegar a envelhecer. Sobretudo sendo homem negro".
Organizações de mulheres negras como Geledés e Criola há mais de três décadas têm articulado, nacional e mesmo internacionalmente, ações que buscam incidir no enfrentamento ao racismo e no combate às desigualdades.
Não é recente, contudo, a história da participação de mulheres negras na construção de garantias do direito à existência digna, em uma sociedade que se forma sob a égide da desigualdade social fundamentada na hierarquia entre "raças". A atuação dessas mulheres é observada, desde o período colonial, tanto no cuidado com a vida, como parteiras, curandeiras e benzedeiras; como mantenedoras de famílias constituídas por laços consanguíneos, espirituais e/ou de compadrio, seja no cativeiro ou em liberdade; quanto na articulação e manutenção de formas associativas, como as irmandades leigas (especialmente as do Rosário) que prestavam assistência a grupos de gentes africanas, pretas e pardas (dentre os quais, em algumas situações sociais incluíam-se indígenas e afroindígenas) - inclusive na consecução da alforria. A liberdade tão almejada, ainda que precária, foi conquista protagonizada, não raro, por mães negras, de diversas maneiras, como destaca a historiadora Raiza Canuta da Hora em minucioso estudo sobre as alforrias e relações de gênero na Bahia. As mulheres negras são fundamentais também em experiências associativas instituídas em contexto de pós-emancipação, entre fins do século 19 e início do 20, como dão a conhecer as pesquisas de Fernanda Oliveira e Jonatas Roque Ribeiro.
Nos quilombos e nos terreiros; nas lutas por terra e moradia; nas mobilizações comunitárias por melhorias urbanas nas favelas, por creches, por saneamento básico; nas lutas pela redemocratização e pela garantia de direitos de saúde e educação, dentre outros, na Constituição de 1988; nos movimentos negros organizados ou na base dos partidos políticos que raramente as elegem - essas mulheres têm gestado futuros com fundamentos ancestrais.
Parte destas lutas tem alcançado lugar nas esferas de governança, como a antiga Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), de onde a ex-ministra Luiza Bairros, em 2011, já dizia sobre a inadmissibilidade da indiferença diante do fato de que "negros morrem mais cedo quando comparados a qualquer outro grupo social" e centrava esforços na construção de um Sistema de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), conforme previsto no Estatuto da Igualdade Racial.
Mas, como demonstram os reveses da vida política brasileira dos últimos anos, direitos arduamente conquistados andam sob ataque e a requerer cuidados, atenção, perspicácia e sabedoria agregadora que nos têm sido ensinados pelas agências femininas negras. Seremos capazes de "pôr reparo"?
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