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Opinião

O imbróglio das categorias de cor (e raça?) no Brasil

Os dados do último censo, que finalmente foi realizado depois de todos os impedimentos do último (des)governo, provocam reflexões, mas também apontam para alteração de processos há muito vividos por essas bandas. No que tange ao perfil de cor da população brasileira, 45,3% das pessoas são pardas, 43,5% brancas; 10,2% pretas; 0,8% indígenas e 0,4% amarelas.

Por ora, quero chamar a atenção para o aumento da porcentagem de pardos, pretos e indígenas, que passaram respectivamente de 43,42% para 45,3%, de 7,52% para 10,2% e de 0,43% para 0,8%. Mas antes, vale atentar para os significados da categoria cor no censo.

Categorias de cor aparecem nos recenseamentos desde 1872 e desde então sofreram alterações. Mestiço foi substituído por pardo, por exemplo, quando era considerado apenas o resultado de pretos e brancos. No último censo além da autodeclaração os significados atribuídos para para pardo mantêm o dado da mestiçagem, mas agora consideram qualquer grupo desde que o predomínio seja de traços negros, ou seja, são os elementos fenotípicos (traços); para preto a predominância de traços físicos de ascendência africana; para indígena não se faz necessária a condição de aldeamento; para amarelos a ascendência oriental e, para brancos, os traços físicos de populações europeias.

Mas quando recebemos a pessoa responsável por fazer o recenseamento, ela só nos pergunta com qual "cor/raça" nos autoidentificamos e, a menos que façamos perguntas mais aprofundadas, respondemos com base no que nós entendemos por cor e raça. De forma geral, é o senso comum que opera.

Que o Brasil é um país miscigenado, sabemos. Que estamos cada vez menos brancos e menos pretos (cor da pele) e mais marrons, também é notório. Mas as categorias disponíveis não se vinculam apenas com o que é visível, ou seja, não é só fenótipo. Só que desde meados do século passado é o fenótipo a base da reflexão. Sim, estou entrando com a camada de reflexão e produção de conhecimento, para além do senso comum. A cor informa a raça, ou, melhor dito, grupo étnico-racial. A cor da nossa pele e o formato dos nossos traços e cabelo, nessa ordem, definem a que grupo étnico-racial pertencemos.

Mas, há mais camadas. Desde os anos 1920 grupos de homens e mulheres negras disputam uma positivação do "negro" (com base em uma ideia de raça que então circulava). Lá tinha a ver com se distanciar da escravidão, e do status social rebaixado que operava em torno de negro e positivar o que até então era denominado "homem de cor". Esse processo ganha ainda mais vitalidade com a noção de consciência negra dos anos 1970, que além de positivar o ser negro apresenta também a relação com o continente africano. A "mãe África" é a protagonista, assim a ascendência, principalmente cultural, começa a despontar o que hoje chamamos por grupo étnico-racial negro.

De lá pra cá, alguns outros elementos se juntaram ao debate e, de novo, o movimento social negro é protagonista. Destaco o uso do "afrodescendente", que aparece com força como resultado da Conferência de Durban, de 2001. O termo passa a identificar descendentes de africanos na diáspora.

Se até então a marca visual definia o termo, agora a ascendência, já comum nos EUA, passa a ser mais acionada. Isso opera a nível transnacional e tem na dinâmica cultural um baita suporte. A conscientização ganha força!

Ótimo! Porém, nem tanto. E o nosso processo histórico sofre com isso. Tem uma certa alteração de rota, à qual se soma o que as pessoas fazem com o avanço das políticas de reparação, principalmente com as cotas nas universidades públicas brasileiras.
No acesso às cotas o que vale é a autodeclaração, mas daí vêm as fraudes e a necessidade de controle, o que justifica a Portaria Normativa 4/2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão que regulamenta as bancas de heteroidentificação. Junto disso tudo tivemos o Reuni responsável pela ampliação das vagas no ensino superior. Estudantes de todo o Brasil podem concorrer a vagas em universidades distantes dos lugares em que cresceram e estudaram até então. Muitas dessas pessoas conseguem as vagas por meio do Enem e se deslocam. Eis que um grande imbróglio aparece: "Mas aqui eu [não] sou negro, então?". E a pergunta só faz sentido porque os significados atribuídos às nuances de cor dependem de contextos sociais e históricos específicos. Em síntese ser negro no Rio Grande do Sul, estado com maior percentual de população branca, não é o mesmo que ser negro no Pará, estado com maior percentual de população parda. As concepções de cor, e posteriormente de grupo étnico-racial, são diferentes.

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Algo semelhante passa a acontecer com pessoas indígenas também. Afinal, para acessar as vagas é preciso ter o Rani (Registro Administrativo de Nascimento Indígena) ou indicação de liderança, como de um cacique ou alguém que o valha. Mas e quem não vive(u) em condições de aldeamento? Em tese são pardos, inclusive certidões de nascimento que registravam esse dado inseriram a cor parda. E então não acessam as vagas para pardos já que isso compõe o que chamamos politicamente de negros no Brasil? Além disso, vale lembrar que indígena, pelo IBGE, não está restrito ao aldeamento ou apresentação de Rani.

O imbróglio se aprofunda. E é aí que aparece um ponto do que significa esse dado recentemente divulgado: o Brasil é um país de maioria parda. Mas todos esses autodeclarados pardos (cor) são negros (grupo etnico-racial)? Todos os pardos são alvos potenciais do racismo?

Em sua tese de doutorado em Política Social e Direitos Humanos, Carla Ávila chama a atenção para os "pardos brancos" e os "pardos negros". Para a cientista é o fenótipo africano que faz com que a pessoa seja um pardo negro, e, assim, um alvo potencial do racismo, e estes são os sujeitos de direito das ações afirmativas. A intelectual indígena e doutora interdisciplinar em Ciências Humanas Geni Nuñez questiona o não-lugar de pessoas indígenas dentro da categoria pardo, sem deixar de lado que essas mesmas pessoas vivenciam as adversidades do racismo.

Imbróglio, imbróglio e imbróglio.

Respostas? Não tenho. Perguntas? Muitas! Contrariamos os prognósticos do início do século passado que versavam sobre o branqueamento da população brasileira, isso é um fato. Mas estamos frente a uma outra forma de se autodefinir que pode conter outras formas de manifestação do racismo, haja vista que o estado do Pará aparece no censo de 2022 como o mais pardo da federação, com uma concentração de 69,9% da população em relação às demais categorias de cor, e no anuário brasileiro de segurança pública divulgado ano passado aparecia como o 1º estado em denúncias de injúria racial, com 36,8% das denúncias. Não se faz necessário muito esforço para olhar para a população paraense e observar traços africanos e indígenas. São os afroindígenas, como os estudos antropológicos têm chamado a atenção.

Tudo é parte do mesmo processo, mas ainda assim me parece um outro momento. Como lidaremos com isso de forma a construir parâmetros ainda mais eficazes para as políticas públicas de ações afirmativas? Todos esses pardos (cor) são negros (grupo étnico-racial)? Indígenas, ficam como nessa discussão? Uma pessoa que é parda no Pará, por exemplo, e que se autodefine como afroindígena, é o que para o censo e para as comissões de heteroidentificação? E o racismo, que ao que tudo indica, se incrementa, atinge de que formas essas mesmas populações?

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Agora que temos os dados precisamos saber como lidar com eles. Afinal, é justamente para melhor pensarmos sobre igualdade e acesso a direitos que os dados censitários são tão importantes. São eles que nos mostram uma radiografia desse país de dimensões continentais. Algumas das perguntas foram aqui dispostas, que possamos ir atrás das respostas para aprofundarmos parte do que nos move: a efetivação da democracia sem uma linha que exclui com base nas ideias perversas e pejorativas que ainda hoje circulam sobre cor e raça.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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