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Opinião

O que significa e o que esperar do pedido de perdão português?

Na noite desta última terça-feira (23), o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, fez um pronunciamento inédito ao assumir "total responsabilidade" do seu país no tráfico de pessoas africanas escravizadas para a América, na própria escravidão, no extermínio de indígenas americanos e africanos e nos inúmeros casos de saques às populações colonizadas. "Temos de pagar os custos", declarou.

Esta postura, ainda que tardia, reforça um debate internacional importante sobre políticas de reparação às injustiças praticadas no passado e que retumbam ainda hoje nas condições de países com passado colonial. Mas, o que significa este reconhecimento? Por que esta postura é importante? O que podemos esperar disso?

A identidade portuguesa foi intimamente gestada junto à colonização de outros territórios e às atividades no mar - dentre as quais, por vezes, o tráfico e a escravidão foram estrategicamente silenciadas. Camões já registrava no início de Os Lusíadas (1572), que via "as armas e os Barões assinalados/Que da Ocidental praia Lusitana/Por mares nunca de antes navegados/Passaram ainda além da Taprobana,/Em perigos e guerras esforçados/Mais do que prometia a força humana,/E entre gente remota edificaram/Novo Reino, que tanto sublimaram". Reino edificado a custo de muito sangue, vale explicitar.

O hino português denota seu povo como "heróis do mar", a bandeira nacional carrega uma esfera armilar, instrumento de astronomia para orientação marítima, utilizada por navegadores. Estátuas, mapas, emblemas, peças de museus, a opulência de igrejas, palácios e outros edifícios públicos portugueses revelam a deferência daquele país a uma história repleta de violências.

De acordo com The Trans-Atlantic Slave Trade Database, no caso do Brasil e do tráfico atlântico, entre os primeiros anos de colonização portuguesa até à Independência, estima-se que cerca de 4,4 milhões de pessoas africanas tenham chegado deste lado do oceano, cabendo observar a atuação direta de portugueses nesses imensos números que representam milhões de vidas humanas. Portugal contribuiu para a construção de uma das maiores sociedades escravistas do mundo, a brasileira, dizimando uma população indígena estimada entre 5 e 7 milhões de pessoas por volta do ano de 1500.

O perdão e o debate internacional

Diante de um histórico silêncio do Estado português em relação às atrocidades praticadas no passado contra outros povos, em nome da conquista e da fé e a pretexto da civilização, a postura de Rebelo de Sousa confere maior robustez a um debate transatlântico fundamental sobre reparações. A verbalização da responsabilidade lusitana lança luz sobre a tragédia que regeu todo o processo de colonização portuguesa ao redor do mundo.

O tráfico de pessoas africanas e sua escravização juntamente com povos indígenas - quando não exterminados - fez parte de um projeto secular de conquista e saqueamento de riquezas em prol do acúmulo de capital por pequenos grupos sociais e econômicos portugueses e em benefício do Estado lusitano. Outros países e instituições com passado colonial/escravista estão tomando a iniciativa de suscitar este debate em torno da reparação ou estão sendo forçados a fazê-lo. Em 2020, o mercado de seguros londrino Lloyd's pediu perdão pelo seu desempenho no tráfico de pessoas africanas escravizadas para as Américas - sobretudo para o Caribe -, assegurando políticas de financiamento em benefício das populações negras locais.

Em 2022, a Holanda anunciou a criação de um fundo milionário para dar suporte a projetos - principalmente educacionais - que possam, de alguma forma, reparar o legado escravista em suas ex-colônias, entre as quais podemos citar Aruba, Indonésia e Curaçao. Ano passado, 2023, um grupo de pessoas, majoritariamente da Martinica, ingressou com um processo em cortes francesas requerendo reparação por "prejuízos transgeracionais" em consequência da escravidão dos seus ancestrais.

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Com a atitude do seu presidente, Portugal se coloca à mesa do debate internacional para discutir sobre o seu passado, tendo em vista ações concretas para a mitigação das consequências nefastas que o tráfico, a escravidão, o extermínio e toda a sorte de outras violências ainda fazem ecoar nas sociedades que foram colonizadas. O racismo aí encontra o seu lugar, no sentido de ter sido herdado por meio da construção de sociedades pautadas pela escravização de pessoas negras e indígenas, sendo reeditado posteriormente até os dias de hoje, se traduzindo nas cores do analfabetismo, do desemprego, do alcoolismo, das drogas, da população carcerária e de outros aspectos e espaços racialmente orientados.

Para além do perdão

Nesta última quarta-feira (24), a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, se manifestou pelo acompanhamento do diálogo com o governo português, a fim de encontrarem medidas concretas para além do reconhecimento daquele país sobre sua centralidade em episódios da escravidão, violência e saques. É de se esperar que o Estado português se prontifique a financiar mais pesquisas acadêmicas que possam contribuir ainda mais para compor um quadro mais amplo e profundo sobre a sua participação nas atividades do tráfico de pessoas africanas, sua escravidão e na escravidão e extermínios de povos indígenas, além dos saques promovidos por portuguesas em suas colônias.

É igualmente urgente a elaboração de planos de ação objetivando o custeio de projetos educacionais com vistas a potencializar a formação e ascensão social de populações negras e indígenas. Também se torna importante apoiar a criação e manutenção de monumentos e espaços dedicados a evidenciar e fomentar a reflexão sobre este passado colonial.

Como afirmou o historiador Hilary Beckles, presidente da Comissão de Reparações da Comunidade do Caribe (Caricom), fundada pelos países daquela região para exigir reparações dos antigos países colonizadores, "não basta pedir perdão" .

É preciso que nações como Inglaterra, sede de instituições bancárias importantes que lucraram com o tráfico e a escravidão, a França que indenizou ex-senhores caribenhos e Espanha que ainda está silenciosa neste debate, além de outros países, possam reconhecer as tragédias que causaram e que edificaram suas riquezas ao longo de séculos, em detrimento da exploração, violência e miséria legados às suas ex-colônias.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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