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Opinião

De São Benedito ao Psica, festas negras atravessam a história

Nos acostumamos a pensar - e fomos tradicionalmente ensinados a tal - que as experiências da população negra estão unicamente atreladas ao mundo do trabalho, sobretudo à escravidão, reduzindo assim toda a nossa expressividade a uma única dimensão da vida.

Deste modo, as formas de organização política, associativismo, sociabilidade, práticas culturais e suas estéticas são relegadas a um segundo plano diante dessas dinâmicas e dos modos de exclusão e marginalização da gente negra. Porém, o que nos é revelado são festas, manifestações e expressões culturais que exaltam as ancestralidades afro e indígenas e que ressignificam nossas vivências no Brasil, ontem e hoje.

Na Amazônia isso não é diferente. E se eu te contar que aqui essas experiências culturais negras - e afroindígenas - atravessam séculos e gerações? Além disso, se redinamizam com o passar do tempo, juntando tradição e modernidade em novas expressões da cultura e identidade local.

Esse conjunto multifacetado de referências compõe o mosaico da diversidade amazônica e revelam a encruzilhada de saberes, práticas e ritmos indígenas, negros, nordestinos e até caribenhos que aqui são importantes legados das comunidades da região, sobretudo as afrodescendentes.

Perceber isso é enxergar a Amazônia sob outras lentes. Tradicionalmente retratada como reduto da biodiversidade e dos povos indígenas, as outras populações da região - como a negra - e suas expressões socioculturais são geralmente deixadas de lado.

Ora, historicamente se entendia que a presença negra na Amazônia tinha sido ínfima, bem como a contribuição do negro para a formação social e cultural da região. Ledo engano.

Algumas contribuições historiográficas têm promovido novos entendimentos sobre o passado da gente negra na Amazônia e, por extensão, suas dinâmicas de existência no tempo presente, especialmente quando se observa a cena cultural (festivais, circuitos de festa, celebrações religiosas etc.) como campo de visibilidade desses sujeitos e suas manifestações tradicionais. Em vista disso, a Amazônia e suas culturas locais têm sido cada vez mais inseridas no mapa cultural do país.

Festas a São Benedito e as experiências culturais negras na Amazônia

As tradições de culto e devoção a São Benedito estão espalhadas por diferentes partes do Brasil e são uma potente expressão de saberes e fazeres populares com facetas negras e indígenas, atravessadas por práticas e modos de vida enraizados em matrizes culturais afro-brasileiras e afro-indígenas que se redinamizaram aqui em face da colonização e da diáspora. Essas tradições estão associadas a diversas manifestações: Congadas, Marujadas, Cheganças, Boi Bumbá, Tambor de Crioula etc.

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Na Amazônia, e mais especificamente no Pará, as festas em homenagem a São Benedito têm palco central no mês de dezembro. Aqui se caracterizam enquanto celebrações que retomam uma tradição religiosa e cultural de grupos negros, sobretudo escravizados, que atravessou diferentes gerações. Ou seja, são faces de experiências negras (e afroindígenas) na Amazônia que se expressam através de tais práticas socioculturais e demarcam um conjunto de identidades locais.

No Pará, os festejos a São Benedito ocorrem das comunidades quilombolas e negras rurais do baixo Amazonas, passando por Gurupá, até Santarém Novo, Ourém e o quilombo de Itamoari, na divisa com o Maranhão. É uma celebração muito difundida pelo estado e agrega cantorias, batuques, danças, cortejos, folguedos, louvações e procissões com a imagem do santo, guardadas também as especificidades locais de cada manifestação.

Mas é na região bragantina, sobretudo nas cidades de Bragança, Tracuateua, Augusto Corrêa, Primavera, Quatipuru, Capanema e, por extensão da tradição, Ananindeua, que a festa a São Benedito adquire outra tônica e converte-se em forte complexo cultural da região.

Falar de São Benedito na região bragantina é tratar de um conjunto de referências ao passado e ao presente que compõe a cultura e a identidade locais. É enfatizar uma tradição originada com os escravizados em Bragança, em fins do século XVIII, e que está ligada a um tripé importante que ajuda a caracterizar essa manifestação tradicional: a Irmandade, a Festividade e a Marujada.

Ou seja, é uma devoção e um expoente de cultura herdados das comunidades negras em Bragança (de livres, libertos e escravizados) e que, daqui, se desdobraram para outros municípios.

Essas festas para São Benedito ocorrem na oitava do Natal, com seu ápice no dia 26 de dezembro. A exceção são os festejos que ocorrem no início de janeiro, em associação a São Sebastião. Mas em ambos os casos, a Marujada é um elemento aglutinador entre essas manifestações. Logo, ela é um bem cultural partilhado por esses municípios, costurando um contínuo de relações e experiências ao longo da história.

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Aqui, as festas de São Benedito são profundamente relacionadas com a Marujada, suas danças, indumentárias, performances, ritualísticas etc. Uma tradição que se inicia com os negros em 1798 e se mantem até hoje. Sua importância é tamanha que as Marujadas da região bragantina estão em processo de reconhecimento pelo Iphan para tornar-se patrimônio cultural imaterial do Brasil, cujo inventário teve início em 2018.

O Psica e as sonoridades afroperiféricas do Norte

Ao lado de Afropunk Bahia e NegrArte, o Festival Psica é um dos mais expressivos quando se fala de circuitos que exaltam a cultura negra e das periferias. É a sonoridade e musicalidade afroperiférica da Amazônia invadindo a cena cultural e demarcando seu espaço junto desses festivais e circuitos importantes no Brasil.

Organizado pela Psica Produções, produtora independente e periférica, idealizada por dois homens negros e cuja equipe é formada por pessoas negras e indígenas, o festival é realizado em Belém desde 2012, mas só recebeu a denominação "Festival Psica" em 2017.

De lá para cá, o Pisca tem crescido e ampliado intercâmbios que visibilizam as sonoridades e circuitos musicais aqui na Amazônia. Do carimbó ao tecnobrega, passando pelas festas de aparelhagem que sacodem as periferias e os interiores do Pará. Tudo isso se mistura com expressões da musicalidade negra de outras partes do país.

Já passaram pelo palco do Psica artistas importantes da cena nacional, como Djonga, Karol Conká, Chico César, Liniker, Baco Exu do Blues, Urias, Jorge Ben Jor, Gaby Amarantos, Alcione, entre outros e outras; além de diferentes nomes da cena regional que se apresentam no festival. Vale destacar que em 2021, uma das principais atrações do Festival foi Elza Soares, uma das maiores intérpretes da música preta brasileira, sendo este o seu último show em vida.

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O Festival Psica coloca a Amazônia e a cidade de Belém (PA) na rota de grandes festivais independentes de música, demonstrando a potencialidade da capital paraense diante de uma forte tradição musical que emana das áreas periféricas e das culturas negras - e afroindígenas - locais. Uma potência de multivozes e referências culturais que demarcam a identidade afroamazônida e, igualmente, o nosso lugar na formação da sociedade local, na capital e no interior.

Portanto, o Psica é uma grande celebração dessa cultura das periferias e da música preta brasileira produzida, e reverberada, desde a Amazônia. E é um reconhecimento e valorização dessa Afro-Amazônia, de suas múltiplas expressões artísticas e manifestações culturais que atravessam séculos de tradição.

Assim, para além da violência, truculência e mortandade que nos é direcionada diariamente por conta do racismo estrutural em nossa sociedade, é preciso também focalizar outros cenários e contextos nos quais as pessoas negras estejam em comunhão, resiliência, alegria e descontração, exaltando sua existência.

Perceber o conjunto de sociabilidades que se concatena em torno da cultura e das relações tecidas por gente negra e indígena, apesar de visões folclorizadas e estereotipadas, é reiterar nossas formas de enxergar e agir sobre a realidade, lutar por nossas vidas e fazer história.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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