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8 de janeiro: fracassou o golpe e com ele a democracia racial

"Tenho a absoluta certeza que na defesa incansável da democracia saberemos aprender as lições do passado, aplicando-as no presente e evitando que novas tentativas de golpe ocorram no futuro". Foram estas as últimas palavras do discurso do ministro Alexandre de Moraes no ato "Democracia Inabalável", ocorrido nesta última segunda-feira, 8 de janeiro, em memória do primeiro ano desde a fracassada tentativa de golpe de Estado ocorrida na Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF), por partidários extremistas do ex-presidente.

Sob as diversas perspectivas pelas quais este episódio pode ser interpretado, o componente racial é um elemento tão expressivo quanto relativamente pouco explorado.

A adoção sistemática da democracia racial enquanto dado de uma realidade palpável foi reiteradamente acionada em diferentes momentos históricos no Brasil. Fosse no imediato pós 13 de maio de 1888, quando parte dos ex-senhores de escravizados intensificaram a negação da existência daquilo que se chamava à época de "ódio de raça" - ao qual atribuíam ser coisa dos Estados Unidos -; fosse sob o autoritarismo de Getúlio Vargas, o mesmo que extinguiu a Frente Negra Brasileira em 1935, organização em prol dos direitos das pessoas negras do país; ou ainda a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), que insistia na existência de uma pátria igualitária, harmônica e sem divisões de quaisquer natureza.

Vinda desde pelo menos o século XIX, a ideia de harmonia racial e de silenciamento das diferenças era tida como um projeto nacional a ser seguido. José Bonifácio, considerado o patrono da independência brasileira, já afirmava em 1823 que era preciso cuidar "desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto, que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política".

Mas como combinar, amalgamar, homogeneizar e compactar uma sociedade extremamente desigual como a que o próprio Bonifácio vivia, calcada na escravidão de pessoas africanas e seus descendentes?

A ideologia de democracia racial

Mais tarde, as pretensões dos ex-senhores no pós-abolição eram de que, nas palavras do senador baiano José Antonio Saraiva, o liberto "ficasse amigo do seu senhor", escamoteando, desta forma, a liberdade precária na qual os ex-escravizados haviam sido lançados a partir da resumida lei de 13 de maio.

A República, instituída em 15 de novembro de 1889 - e que neste ano de 2024 completará 135 anos - achou por bem atribuir ao Império as profundas desigualdades que esta procurou manter e reforçar, a partir, não só da adoção do racismo científico como embasamento de condutas policiais, mas também da expulsão das populações negras dos grandes centros urbanos para as periferias, formando as favelas. No entanto, as autoridades republicanas continuavam a negar o "preconceito de raça" como algo a ser integrado às políticas públicas do país.

Dando continuidade a essa tradição de negação do racismo no Brasil, na década de 1930, Getúlio Vargas não só procurou desarticular a Frente Negra, como financiou e elaborou um discurso de brasilidade no qual não cabiam conflitos raciais e lutas de classe. Ademais, em 1933, Gilberto Freyre lançou o seu livro Casa Grande & Senzala que articulou toda essa crença numa sociedade multiracializada e harmônica, dando pretensos ares de cientificidade a uma crença determinada a renegar as desigualdades raciais escancaradas pela realidade da vida cotidiana.

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Não só Vargas utilizou deste discurso para pintar um "Brasil brasileiro, terra do samba e pandeiro", mas também Carmem Miranda, uma mulher branca, vestida com trajes inspirados nos das mulheres negras, ganhadeiras, contribuiu para essa ideia de um país pacificamente miscigenado e avesso ao racismo.

Este ideal também foi reiterado mais tarde, com a Ditadura Civil-Militar que procurou desbaratar movimentos negros, silenciando pautas raciais, alegando a inexistência do racismo, encarando-o como ameaça à união dos brasileiros. Não foi sem razão que em 1968, este regime autoritário instituiu o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), um programa educacional sem compromisso com quaisquer pautas sociais, inclusive a racial, contra o qual Paulo Freire se opôs frontalmente.

Finalmente, em 8 de janeiro de 2023, o que estava em jogo era justamente a continuidade da negação do racismo enquanto esteio estruturante do Brasil. Com o objetivo de escamotear a questão racial, o antigo governo incluiu (pouquíssimas) pessoas negras em suas instâncias para dar lastro a um discurso de inexistência de racismo no país. O silenciamento desta pauta fala alto entre os extremistas que tentaram impor um golpe de Estado no último ano.

O uso sistemático de camisas e pinturas em verde e amarelo alimentava a narrativa ilusória de que todos os brasileiros são iguais independentemente da sua cor/raça, gênero e classe social. Aparato para negar a injustiça da realidade, a fim de manter privilégios e conservar o Brasil tal qual havia sido transformado: um país com 8 milhões de pessoas com fome e insegurança alimentar, sem estímulo à vacina, com farta propagação do autoritarismo, sem atenção aos povos indígenas, com explosões e acobertamentos de casos de corrupção etc.

Democracia inabalada, democracia racial abalada

A resistência das instituições republicanas mostrou não só a força do Estado democrático de Direito, mas também o compromisso republicano e do governo brasileiro com a realidade retumbada pelos números dos censos que o país recolhe, evidenciando como a cor das pessoas ainda hoje influi diretamente nas suas oportunidades de ascensão social, de direito à cidadania e à vida.

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A aprovação da revisão da lei de cotas pelo Parlamento, a queda do marco temporal pelo STF, a volta de programas sociais, a exemplo do Minha Casa, Minha Vida, pelo governo, entre outras medidas adotadas neste último ano, demostram o reconhecimento de uma sociedade racialmente desigual à qual se pretende transformar a partir da justiça social.

Há um ano, a Democracia venceu a farsa da "democracia racial". É verdade que não foi uma vitória definitiva, - uma vez que ainda é comum nos depararmos com discursos sobre harmonias raciais no Brasil -, no entanto, foi uma boa demonstração de como estamos dispostas e dispostos e garantir a reparação necessária para a construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e igualitária para todas e todos.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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