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Opinião

Exposição 'Diásporas' ressignifica legados na afro-amazônia

Desde o dia 30 de novembro de 2022 está em exibição, no Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), um conjunto de peças que compõem a exposição Diásporas - Artefatos africanos e de origem africana do acervo do Museu Goeldi. De acordo com o site do MPEG, a exposição já recebeu mais de cem mil pessoas. Diásporas seguirá aberta ao público, em Belém, até o dia 17 de dezembro de 2023.

A exposição é composta por peças africanas e Saramaka que englobam parte do acervo etnográfico do MPEG, o qual está salvaguardado na Reserva Técnica Curt Nimuendajú. Desde o trágico incêndio no Museu Nacional, em setembro de 2018, o Museu Goeldi e suas coleções científicas tornaram-se os mais antigos do Brasil. As coleções Africana e Saramaka são dois conjuntos representativos da cultura negra musealizada na Amazônia, cujas referências permitem enxergar as muitas conexões transatlânticas na região.

A curadoria da exposição foi feita em colaboração com o Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa). O Cedenpa já conhecia o acervo e tinha interesse em desenvolver ações para sua difusão junto à sociedade paraense. E através da professora Zélia Amador de Deus e da professora Nilma Bentes, em diálogo com a proressora Lúcia van Velthem, curadora do acervo etnográfico do MPEG, foi possível construir uma exposição com essas coleções de referência negra, de acordo com Maria Luiza de Carvalho Nunes, técnica cultural e ativista do Cedenpa.

Em planejamento desde 2021, somente no segundo semestre de 2022 que o MPEG recebeu uma verba que possibilitou materializar essa exposição. Aí começou o processo de curadoria compartilhada para a concepção da narrativa expográfica das peças. Estiveram envolvidas na curadoria Lúcia van Velthem, Zélia Amador de Deus, Nilma Bentes, Angélica Albuquerque, Samantha Silva, Maria Luiza Nunes e Luzia Gomes. Do vasto acervo, foram selecionadas algumas peças que reforçavam a ideia central da exposição: estatuetas antropomórficas, armas cerimoniais e as Kuja (cuias) Saramaka, um povo maroon do Suriname.

Assim, a exposição ganhou vida e foi inaugurada no dia 30 de novembro de 2022, em cerimônia solene no Parque Zoobotânico do MPEG. Dividida em três partes, "Imagens humanas", "Emblemas de poder e prosperidade" e "A arte das Kuja", a exposição Diásporas trouxe como proposta expográfica uma contranarrativa sobre as culturas negras e suas tecnologias ancestrais através das peças selecionadas, reforçando imaginários humanizadores sobre os povos africanos e afrodiaspóricos. Assim, o Museu Goeldi e o Cedenpa abriram importante exposição que visibilizava a engenhosidade, a beleza e toda potência ancestral de nossos antepassados.

A exposição também contempla um pouco da história dessas duas coleções, entre sua musealização/patrimonialização no passado e suas ressignificações no tempo presente. Sobretudo da coleção Africana, doada ao Museu Goeldi em 1933 pelo governo do Pará, através do interventor federal Major Magalhães Barata, que havia recebido essa coleção do seringalista e político paraense José Julio de Andrade naquele mesmo ano. Napoleão Figueiredo ressalta que essas peças foram recolhidas entre 1887 e 1904, de diferentes grupos no continente africano (em países como Guiné-Bissau, Gabão, Congo, República Democrática do Congo, Angola, Zimbabwe e Sudão), e compunham coleção de um particular na Ilha da Madeira, sendo comprada posteriormente por José Julio de Andrade.

Recebida na instituição, a coleção Africana foi tombada e incorporada ao acervo etnográfico, já expressivo com artefatos de diversas culturas indígenas. E como o Museu Goeldi não possuía cientista social versado em etnologia africana, as peças não receberam maior tratamento neste momento inicial, encerradas na Reserva Técnica de Antropologia por longo tempo. Só em 1949-1950, a coleção africana recebeu breve atenção por parte de Peter Hilbert, pesquisador do MPEG à época, que analisou, classificou e desenhou algumas das peças.

Após isso, somente na década de 1980 é que novos estudos sobre a coleção africana foram desenvolvidos por Napoleão Figueiredo e Ivalise Rodrigues, buscando descrever melhor o acervo e aprofundar a compreensão etnográfica de suas peças. Nesse contexto também é que ocorrem as únicas exposições desse material: em 1982, na reinauguração do Pavilhão de Exposições do Museu Goeldi e na Semana do Negro daquele ano; e em 1984, em virtude do Dia Nacional da Consciência Negra e do Primeiro Encontro Científico e Tecnológico dos Países do Tratado de Cooperação Amazônica.

Ao todo, essa coleção era formada por 592 peças de diferentes grupos étnicos de África - Azande, Bakongo, Bangala, Basundi, Fang, Lendu, Mangbetu, Sanga etc. - e com artefatos das mais diferentes finalidades: objetos para caça e pesca, armaria diversa, esculturas em madeira, artefatos cerimoniais, tecelagem e cestaria, instrumentos musicais e outros objetos de uso diário. Essa coleção revela, na diversidade de peças que a constituem, o modo como certas coleções africanas eram formadas a partir de critérios ocidentais que levavam em conta uma estética exótica atribuída a esses artefatos, não por uma perspectiva etnológica/científica.

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Isso dimensiona bem a própria imagem do colonialismo europeu em África e suas representações distorcidas sobre as sociedades no continente, tomadas enquanto culturas exóticas, inferiores e, portanto, atrasadas. Um ideal difundido também através dos museus. Aqui, a coleção Africana vai cruzar esse colonialismo europeu sobre África e o ciclo de exploração da borracha e seu fausto assentado no trabalho forçado e desumano que alijou indígenas e nordestinos nos seringais amazônicos, o qual financiou a compra da referida coleção doada ao MPEG.

De menor dimensão no acervo etnográfico do MPEG, sem que isso represente uma menor importância, a coleção Saramaka é expressiva quanto à qualidade estética e às técnicas de produção das Kuja, artefatos produzidos com o fruto da cuieira e que recebem diferentes grafismos africanos em seu interior. Recebida a partir dos anos 1980 na coleção, em face de pesquisas desenvolvidas junto a esse povo maroon do Suriname, a coleção Saramaka é importante referência de cultura negra dentro do acervo do Museu Goeldi e que também permite compreender as trocas culturais e relações afro-indígenas construídas nas Américas.

Portanto, essa exposição também é uma disputa com as narrativas que encerram a experiência da gente negra em torno da escravidão e reforçam o apagamento contínuo de nossas agências, saberes e histórias. Ou nos apartam dos indígenas, como se a nossa luta por direitos fosse totalmente oposta. A exposição Diásporas é um exercício político de direito à memória e de letramento antirracista através dessas peças etnográficas e o que elas representam hoje - das muitas conexões que nós, pessoas negras na Amazônia, fazemos com essas referências.

Falar sobre nosso passado e nossas referências de ancestralidade, para além das marcas de violência impostas pela escravização e desumanização, é problematizar e desconstruir narrativas e imaginários coloniais que diminuem nossas experiências e nos lançam em um lugar de inferioridade, vitimização e marginalidade. Aqui, as visões da branquitude tentam, a todo custo, folclorizar (ou demonizar) nossas práticas culturais, saberes e espiritualidades. Mas não nos reduzimos a esses enquadramentos. E na contramão disso, exposições e propostas curatoriais em colaboração com os movimentos sociais, negros e indígenas, têm problematizado essa visão engessada e criado outras narrativas centradas desde nossas estéticas e epistemologias ancestrais. A ancestralidade é o futuro!

No Novembro Negro de 2022, o MPEG afirmava o seu compromisso com a luta e mobilização dos movimentos negros e com a construção de outra memória social a partir de referências afrocentradas. Recobrar isso um ano depois, em meio a aprovação do Dia da Consciência Negra como feriado nacional, é enfatizar o rumo que queremos para esse país e suas instituições.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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