Ailton Krenak na ABL é passo para reconfigurar as narrativas sobre o Brasil
A posse do filósofo, escritor e ambientalista Ailton Krenak na ABL (Academia Brasileira de Letras, em 5 de abril, é um feito inédito, e torna-se especialmente notável ao considerarmos que ao mais novo "imortal" corresponderá a cadeira de número 5, outrora ocupada por José Murilo de Carvalho, reconhecido historiador, falecido em 2023.
A eleição e posse de Krenak como membro da instituição literária fundada por Machado de Assis e seus contemporâneos parecem assinalar um passo importante na reconfiguração das narrativas sobre o Brasil, ao reconhecer a relevância das perspectivas indígenas sobre a história, as línguas e cosmovisões secularmente massacradas nestas terras pindorâmicas, em contínuos esforços por eliminação dos povos originários, em favor da colonização ou em nome do desenvolvimento e do progresso.
Em seu discurso, Ailton relembrou a pergunta que se fizera antes da posse: "?Será que nessa cadeira cabem 300??. (...) Eu não sou mais do que um, mas eu posso invocar mais do que 300. Nesse caso, 305 povos, que nos últimos 30 anos do nosso país passaram a ter a disposição de dizer: ?estou aqui?. Sou Guarani, sou Xavante, sou Caiapó, sou Yanomami, sou Terena".
O evento teve significativa repercussão nos noticiários e nas redes sociais. Talvez por sinalizar ventos de esperança, diante de um cenário que ainda ecoa as violências perpetradas pela sociedade e pelos governos ao longo da constituição do Brasil.
A historiadora Núbia Braga Ribeiro, no livro "Os Povos Indígenas e os Sertões das Minas do Ouro no Século XVIII", traz a lume a maneira como estiveram intrinsecamente relacionados os movimentos de expansão territorial e a usurpação de territórios considerados pela administração colonial como não povoados - os chamados sertões - nas Minas setecentistas.
Isto, a despeito da numerosa presença de cataguases, maxacalis, caiapós, puris, dentre outros, que concebiam a terra como integrante de suas cosmovisões, conferindo sentido à organização da vida.
Muitos destes povos ofereceram resistência às violências cometidas por desbravadores apoiados e/ou subsidiados pelo governo colonial. Outros conseguiram se abrigar nas matas limítrofes aos territórios usurpados.
Mas muitos perderam, além das terras, homens, mulheres, crianças, dizimados nas guerras ou confinados em territórios destinados à sua "civilização", via catequese - método que parece ter perdurado até a tempos mais recentes.
Muitos submetidos a relações e trabalhos forçados em processo bem representado na conhecida expressão "laçado no mato" - quantos de nós não tem uma parente distante cujo nome desconhecemos e cuja existência foi reduzida à memória de ter sido ela uma "índia laçada no mato"?
Tristes exemplos da perpetuação da maneira como indígenas foram, e têm sido, tratados no Brasil são noticiados com frequência e não parecem causar comoção. A sociedade brasileira parece também não se sensibilizar em face das denúncias cotidianas dos movimentos indígenas em defesa de seus direitos. A empresa colonial parece ter obtido sucesso ao fomentar a desumanização dos povos originários, tal como fez com os povos africanos aqui escravizados - ambos subordinados ao domínio do colonizador.
A banalização de atrocidades contra essas comunidades foi, decerto, fator de sustento para o indeferimento, na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro e da ex-ministra Damares Alves, dos requerimentos de reparação coletiva por graves violações aos direitos de comunidades indígenas durante a última ditadura civil-militar vigente no país. Os pedidos foram reavaliados e finalmente aprovados em 2 de abril pela Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério da Cidadania e dos Direitos Humanos.
Os requerimentos enviados à Comissão pelo Ministério Público Federal atestam os maus-tratos às comunidades indígenas como um todo, decorrentes de ações diretas de intervenção governamental ou da anuência do Estado, com violações à sua integridade física - incluindo o assassinato de pelo menos 8.350 indígenas -, e territorial, com desdobramento na desintegração dos modos de vida dessas comunidades.
Eles documentam detalhadamente, dentre outras violações a indígenas, como os povos Krenak, de Minas Gerais, e Guarani-Kaiowa, do Mato Grosso do Sul, sofreram violências de toda parte, incluindo a sistemática expulsão de seus territórios em momentos anteriores e, em especial, durante o período de 1964 a 1985.
Durante a sessão em que foram aprovados os requerimentos, a presidenta da Comissão proferiu um pedido de desculpas às lideranças Krenak e Guarani-Kaiowa presentes. A aprovação, que marca o reconhecimento por parte do Estado brasileiro de que foi responsável por aquelas violações, bem poderia inspirar também a retomada da Comissão de Mortos e Desaparecidos, extinta pelo governo federal anterior.
Oxalá, os acontecimentos dos últimos dias em favor dos direitos indígenas, assim como a conquista de um Ministério dos Povos Indígenas, abram caminho para medidas efetivas de reparação para as comunidades que, a despeito de todas as atrocidades - sendo das mais recentes a aprovação e sanção da Lei 14.701, de 20 de outubro de 2023, referente ao chamado Marco Temporal -, reafirmam seu direito à existência.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.