Enchentes no RS têm muito a dizer sobre as injustiças climáticas
Mudanças climáticas e crise ambiental são expressões que cada dia se fazem mais presentes no nosso vocabulário. Na comunidade científica há um consenso acerca da existência de ambos.
Mas, o que os eventos que aconteceram no estado mais ao sul do país têm a nos dizer sobre a maneira desigual com que os danos e os riscos alcançam comunidades inteiras? Como um estado de maioria branca ilustra tão bem as consequências do racismo ambiental? Afinal, isso tudo que aconteceu nos últimos dias era de fato inimaginável e imprevisível?
A tragédia de antes
Primeiros dias do mês de maio. Chuvas constantes. Ruas alagadas. Falta de luz e de água. Desespero da população e falta de orientação das autoridades. Este foi o cenário de Porto Alegre naquele longínquo mês de maio de 1941. A tragédia ocorreu em meio aos tempos de guerra, em que a população mais empobrecida sofria com os problemas de abastecimento por conta da Segunda Guerra Mundial.
A chuva que começou no mês de abril não deu trégua aos moradores da capital do Rio Grande do Sul. A cidade, que tinha pouco mais de 250 mil habitantes, viu pelo menos 70 mil ficarem desalojados. Pessoas que moravam nas imediações do centro histórico, incluindo regiões como Cidade Baixa, Areal da Baronesa e a Ilhota. Espaços esses que, como identifica a geógrafa Daniele Vieira, eram territórios negros, marcados pela vida semirrural, com ampla presença da população negra empobrecida e pelas práticas culturais afro-brasileiras.
Apesar de serem espaços semirrurais, estavam localizados próximo ao centro da cidade, onde a vida econômica se concentrava. Assim, não foi por acaso que, após a grande enchente, o poder público tratou de dar início à remoção dos então flagelados. Esse período marca a expansão da cidade de Porto Alegre para áreas muito mais distantes, o que, por sua vez, deu início a bairros e vilas hoje densamente povoados, como a Restinga, distante 24 km do centro de Porto Alegre, ou seja, na periferia da cidade.
Uma periferia que quando das primeiras chegadas de moradores estava desprovida de infraestrutura, num exemplo explícito daquilo que hoje denominamos por racismo ambiental.
Soma-se a isso a não conformação de um plano municipal ou mesmo de políticas públicas para permitir à cidade lidar com eventos climáticos, o que reverberou em mais tragédia em 1967, quando outra enchente ocorreu e acabou por resultar na construção do sistema de contenção das águas do Guaíba, composto por um muro, comportas e diques, construído nos anos 1970.
Sistema este que, sem a manutenção devida nos últimos dias três e quatro, não suportou a força das águas e obrigou a evacuação de milhares de pessoas pelo simples fato de estarem sem manutenção. Quem sofre com isso? Os mais pobres!
A tragédia de agora
Porto Alegre está sendo duramente atingida pela cheia histórica deste maio de 2024. Mas desta vez, a tragédia se alastrou para parte considerável do estado alcançando os vales do Taquari, do Rio Pardo e dos Sinos, além das regiões da Serra, do Planalto, Central e Metropolitana que, de acordo com informações oficiais da defesa civil liberadas no último domingo (5), alcançam cerca de 800 mil pessoas.
O número expressivo pode nos fazer crer que a tragédia ambiental distribui os riscos e danos de forma equânime. Mas isso é um equívoco. Nem é preciso muito esforço para subsidiar essa afirmação. Cidades inteiras foram alcançadas pelas águas, bairros inteiros tiveram de ser evacuados.
No entanto, são os mais empobrecidos, mais uma vez, os atingidos. Aqueles que perderam tudo e não raramente perderam também entes queridos. Muitas dessas regiões eram originalmente impróprias para a construção de casas, pois estavam próximas de rios e de locais suscetíveis a deslizamentos, afinal, a ocupação se deu de forma espontânea, na medida das necessidades da população e, não raro, sem o devido estudo por parte das autoridades. Mais uma das características das injustiças ambientais e urbanas.
Dentre os empobrecidos muito são negros e indígenas, basta observar as entrevistas e imagens dos abrigos. Vale lembrar que a terra e seu cultivo e manejo são fundamentais para os quilombos rurais e as aldeias indígenas. Por conta disso, aldeias que localizam-se nos cursos dos rios estão alagadas. É isso que acontece com os Kaingang, Guarani e Xokleng.
Apesar de algumas situações localizadas, todos os atingidos sofrem com o descaso das autoridades públicas que, mais uma vez, não investiram em planejamento e na manutenção das áreas assoreadas, ou mesmo dos arroios, pontes e do sistema pluvial. Veio tudo abaixo.
A natureza reivindicou de forma gritante o espaço que o estado cedeu, enquanto instituição que geria as terras públicas, para que imigrantes cultivassem suas terras e fizessem do Rio Grande do Sul o que ele é hoje de forma tão orgulhosamente vociferada pelos nossos governantes.
A Serra, região que, por excelência, recebeu os imigrantes italianos e alemães, viu quase 15 mil pessoas serem atingidas por deslizamentos e rompimento de estradas. Na região dos vales, a mais atingida, viu-se a catástrofe repetir-se em um curto espaço de tempo, tendo em vista as tragédias também históricas do ano passado, que aconteceram em setembro e novembro.
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Quero receberMas a repetição veio acompanhada de potencialização da tragédia. Uma tragédia que acontece em grande parte pelo constante assoreamento dos rios e seu par implacável, a saber, a falta de matas ciliares em suas margens.
Na região metropolitana, com quase 90 mil pessoas alcançadas pelas enchentes, está a expressão mais bem acabada da noção de zonas de sacrifício, ou seja, territórios em que além de comporem uma marginalização sistêmica, com infraestrutura precária, estão suscetíveis a enchentes e deslizamentos fruto de um longo processo de exclusão, como teoricamente elucidam as produções das doutoras em direito Leilane Reis e Thula Pires.
Por meio de imagens chocantes da evacuação do bairro Mathias Velho, que dentre outros elementos aparece na mídia vinculado à pessoas empobrecidas e com criminalidade alta, somos induzidas a crer que por um lado a marginalização é resultado de ações individuais, excluindo-se o poder público, e por outro, uma ilusão de que o que ocorreu foi algo natural e não resultado de um processo de exclusão que também evidencia a operacionalidade da injustiça climática.
Essa tragédia poderia ter sido evitada, pelo menos em termos de proporções, caso os governos estadual e municipais tivessem seriamente investido em prevenção, manutenção e respostas tendo por base o que ocorreu em setembro e novembro do ano passado, somado às pesquisas de hidrólogos e climatologistas que apontavam resultados catastróficos para a equação o El Niño e as altas temperaturas advindas das mudanças climáticas.
Além do mais, é sabido que o modelo econômico do agronegócio que impera no sul do Brasil é altamente agressivo para a natureza. Então esse evento não é natural. É uma resposta às emissões de carbono e, principalmente, ao descaso com as leis de proteção ambiental e ao desmatamento, que por aqui é histórico, vide a ocupação do solo nas regiões dos vales. Aos moldes do que nos legou Antonio Bispo dos Santos, nosso grande ancestral, nós precisamos repensar nossos modos de vida. Acrescento - caso contrário, a injustiça seguirá a dar o tom.
Pelo menos dentre a comunidade historiadora, é sabido que coincidências não se explicam por si mesmas. As tragédias voltam a acontecer sob a insígnia da farsa das responsabilidades dos mandatários que em nada aprenderam com os erros. Nós que não dispomos de grandes poderes, arcaremos com o ônus da potencialização da tragédia sempre que ela voltar a acontecer. Numa farsa constante, em que o senso de humanidade parece se fazer presente tão somente para mitigar e lidar com os danos.
Os eventos que aconteceram no RS estão nos mostrando que as bases do racismo ambiental, do descaso com a preservação ambiental e com o direito das pessoas ocuparem a cidade com dignidade traduz-se em tragédias cujas bases estão na injustiça ambiental, que atinge sobremaneira os mais empobrecidos.
Ainda que cidades inteiras tenham sido atingidas, os danos por vezes irrecuperáveis estão com aqueles que perderam o pouco que tinham, e que, obviamente, sequer tinham reservas financeiras ou seguro de seus poucos bens.
Danos esses que poderiam ter sido drasticamente reduzidos se houvesse atenção para as pesquisas científicas, e, principalmente, se houvesse um plano de prevenção, adaptação e mitigação, de forma que a população soubesse como agir frente ao que acontecia. É urgente uma alteração na forma como os eventos climáticos têm sido encarados.
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