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De Shaperville ao BBB 24: a discriminação racial não é um problema do negro

O problema da discriminação racial, do preconceito e do racismo não é um problema essencialmente das pessoas negras. O problema é de quem construiu a narrativa racista e a mantém vigorando até agora por meio das atitudes que teimam em assegurar que algumas pessoas sejam consideradas mais importantes que outras.

Uma série de ações ocorridas em diferentes lugares, só nas últimas semanas, nos comprova isso.

Vejamos o que aconteceu no BBB 24 sob a vigilância de inúmeras câmeras. Uma jovem mulher negra jogou as roupas de um jovem homem negro na piscina. Depois do feito, seu perfil nas redes sociais é derrubado e ela passa a ser alvo de uma série de críticas e comentários racistas que, inclusive, a animalizaram.

No início desse mês, uma diretora branca da cidade de Santa Cruz do Sul (RS) solicitou que o livro "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, fosse excluído das escolas da cidade - livro este premiado com o Jabuti de romance literário em 2021. De acordo com a justificativa da diretora, o material apresenta palavras de baixo calão.

No mesmo estado, uma pessoa registra um caso de injúria racial por cor da pele a cada sete horas - é o que informa a coleta solicitada pelo Grupo Zero Hora à Secretaria de Segurança Pública do RS, no período de março de 2023 a fevereiro de 2024.

Do perfil das injúrias, duas merecem destaque: as proferidas por proprietários a trabalhadores em prédios residenciais e a de clientes dirigindo-se a funcionários em espaços públicos, como de saúde, por exemplo. Em síntese, dizem que os outros não reconhecem seus devidos lugares, ou melhor dizendo, os outros não têm importância alguma frente a seus algozes.

Eu bem podia seguir trazendo uma série de exemplos, até porque no último sábado 56 pessoas foram resgatadas de trabalho análogo à escravidão na cidade fronteiriça de Uruguaiana (RS), os policiais envolvidos no assassinato da trabalhadora Claudia Silva foram inocentados, bem como em rede nacional a cantora Wanessa Camargo e a modelo Yasmin Brunet se autoisentaram de responsabilidade pelas acusações de atitudes racistas, no mesmo BBB 24, pois não tiveram intenção, apesar de algum malabarismo retórico que evocava o racismo estrutural.

As animosidades entre dois participantes negros do BBB 24, a tentativa de censura de "O Avesso da Pele", que rapidamente alcançou outros estados, e os dados cruéis acerca das denúncias de injúria racial, na mais simples das hipóteses, escancaram o quão complexas são as relações raciais no Brasil e, dentre muitas outras, infelizmente, elencam as formas variadas de apresentação da discriminação racial, ora em si mesmas, ora na forma como abordamos e conferimos importância ou não aos atos e seus desdobramentos.

O mais cruel disso tudo é que não se trata de privilégio nosso. Não à toa o 21 de março é a data internacional de combate à discriminação racial. Discriminação essa que, como nos coloca a pedagoga e ativista negra Nilma Lino Gomes, traduz-se em práticas que por sua vez efetivam o racismo que se encontra na nossa estrutura social e o preconceito que conforma os julgamentos de toda a ordem.

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Trata-se de se atentar para a complexidade das formas pelas quais a discriminação é informada e se revela. O mesmo vale para a já desgastada desculpa de que as atitudes racistas não foram intencionais com pedidos que raramente alocam a responsabilidade pelo ato racista em si próprio, mas em quem sentiu-se ofendido. Somos um país racista, mas sem racistas. Mais um mito completamente nosso!

O racismo que atravessa tudo isso é a um só tempo institucional, estrutural e situacional. Está em constante transformação no que tange ao caráter adquirido pela discriminação, como tão bem nos aponta o sociólogo porto-riquenho Eduardo Bonilla-Silva.

Olhem que interessante, apesar de perverso: o dia 21 de março é consagrado à reflexão sobre as formas de destituição da discriminação. Muito em razão daquilo que a intelectual negra brasileira Lélia Gonzalez identificou como racismo explícito, e que poderíamos simplesmente denominar de velhas formas de racismo.

Em outras palavras, para quem desconhece essa história sangrenta e longínqua, foi em um 21 de março, mais precisamente no ano de 1960 e na cidade de Johanesburgo, capital da África do Sul, que durante o regime político do Apartheid, a polícia nacional perpetrou um massacre, levando 69 pessoas à morte e mais de uma centena para à prisão. O Massacre de Shaperville, como ficou conhecido, explicitou o que o racismo institucional, estrutural e situacional é capaz de fazer principalmente em seu formato mais antigo.

Infelizmente, por força sobretudo do mito da democracia racial que aqui opera, somos levadas a crer, enquanto sociedade, que o racismo é um problema das outras pessoas (e por isso falam em racismo reverso) e não uma complexidade que vincula pelo menos os três pontos aqui já assinalados. E, sendo o último situacional, o que bem podemos vincular com a historicidade dos fatos, ele também adquire novo formato. O racismo de hoje não é o mesmo de 100 anos atrás em nenhum lugar do mundo.

Nos deparamos hoje com um novo racismo, e, consequentemente, com um novo caráter de discriminação. O que nos resta, se efetivamente quisermos uma sociedade igualitária, é combater as práticas e simultaneamente lutar por uma alteração das estruturas racistas.

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Não foi e não é aceitável que a expressão "cada macaco no seu galho" ainda explique tanto acerca das práticas de discriminação. Esse Continuum precisa ser quebrado. E as pessoas não negras precisam entender que esse não é um problema dos negros.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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