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Por que escolher uma mulher negra para o STF?

Nesta semana da Consciência Negra torna-se urgente um apelo sobre a escolha para a vaga do Supremo Tribunal Federal deixada pela ministra Rosa Weber.

Apesar de o STF ter conquistado gradualmente importância e ampliado sua área de atuação ao longo do Segundo Reinado (1825-1889), foi no Conselho de Estado que se definiram linhas interpretativas e tomadas de decisões importantes acerca da jurisprudência do país. Os doze conselheiros eram escolhidos livremente pelo imperador, como rezava a Constituição de 1824.

Não é de se estranhar que, em um país no qual se negavam os direitos civis às mulheres, e onde a cor da pele poderia significar um entrave à ascensão social, que os conselheiros fossem exclusivamente homens e predominantemente brancos.

Munidos de seus cargos vitalícios, sob a bênção do imperador, revezaram 49 homens que, juntos e/ou divididos em comissões específicas, emitiam pareceres que influíam sobre a gestão da Justiça no Brasil, conforme demonstram as pesquisas do professor José Reinaldo Lima Lopes (Faculdade de Direito - USP).

Com a República, o Conselho de Estado foi extinto, mas inspirou, juntamente com o Supremo Tribunal de Justiça, os contornos do Supremo Tribunal Federal, que ganhou maior destaque no novo regime. Seus quinze membros, nomeados pelo presidente do país, deveriam ser "cidadãos de notável saber e reputação", eleitos pelo Senado, conforme a Constituição de 1891.

Três homens negros em 179 anos

Três homens negros, todos mineiros, tiveram assentos entre os ministros da mais alta Corte do Brasil. Em 26 de outubro de 1907, o então presidente Afonso Pena nomeou Pedro Augusto Lessa como ministro do STF. Lessa foi bacharel (1883) e doutor (1888) pela Faculdade de Direito de São Paulo.

Mais de uma década depois, em 23 de junho de 1919, Hermenegildo de Barros (1919-1937), também bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo, foi o segundo negro a tomar assento no STF, sob a escolha de Delfim Moreira.

Somente em 2003, 84 anos depois da posse de Barros, que outro negro, desta vez Joaquim Barbosa, se tornaria ministro da Corte, por meio da escolha do presidente Lula. Barbosa formou-se em Direito na Universidade de Brasília (UnB) e tornou-se mestre e doutor em direito público pela Universidade de Paris-II.

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Tanto no Império quanto na República, o número de ministros do Supremo permaneceu muito aquém da representação populacional do país.

Ora, se as bases constitutivas do país deveriam se assentar na representatividade do seu povo, como uma instituição que despacha em nome da Justiça pode se eximir de representar seus cidadãos?

Julgadas e não julgadoras

Desde o Brasil Colônia, mulheres negras têm recorrido às mais diferentes instâncias e repartições da Justiça a fim de serem atendidas em diversas esferas das demandas humanitárias. Uma vez independente, o país viu suas instituições serem requisitadas por essas mulheres para resolverem seus graves imbróglios.

Em 1835, na Corte, a escravizada Leonor impetrou uma ação contra os herdeiros de sua falecida senhora por estes não reconhecerem a alforria concedida a ela pela finada.

Em 1873, na cidade de São Paulo, a liberta Mariana, à contragosto do senhor de sua mãe, solicitou que a Justiça mantivesse sua liberdade e a de sua filha, a menor Faustina.

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Em 1880, em Maricá, Rio de Janeiro, a parda Roza iniciou uma longa batalha nos tribunais em defesa da própria liberdade e de seus familiares.

Todas essas mulheres reconheciam no Judiciário a possibilidade de melhoria de suas vidas, ao ponto de desafiarem senhoras e senhores em longos processos que nem sempre lhes reservavam finais favoráveis.

Ademais, as mulheres negras foram continuamente matéria de apreciação dos magistrados. A própria lei de 28 de setembro de 1871 foi o exemplo mais expressivo das legislações sobre os corpos das mulheres negras porque, ao mesmo tempo em que reconhecia a liberdade dos filhos de escravizadas a partir daquela data, negava-se este mesmo reconhecimento aos nascituros anteriores vindos de corpos tão sofridos quanto os assistidos pela Lei.

Uma mulher negra para o STF

A despeito da continuidade de todas as precariedades e interdições às mulheres negras em suas trajetórias de vida, muitas delas alcançaram lugares de excelência em suas carreiras jurídicas.

Para ficarmos em três nomes, destaco Adriana Alves dos Santos Cruz, juíza, que tem graduação em direito pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é mestre pela PUC-Rio e doutora em direito penal pela UERJ, é professora na PUC-Rio e integra a secretaria-geral do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

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Lívia Sant'Anna Vaz, promotora de Justiça (MP-BA), é formada em direito pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) onde também cursou mestrado em direito público e possui doutorado pela Universidade de Lisboa, Portugal.

Soraia Rosa Mendes, advogada, tem graduação em direito pelo UniRITTER (Centro Universitário Ritter dos Reis), é mestra pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e doutora em direito público pela UnB (Universidade de Brasília).

Existem opções de extrema competência aptas à vaga em aberto para o STF. Neste sentido, para acontecer a mudança é preciso ousar dar o primeiro passo.

É urgente a escolha de uma mulher negra para se assentar na mais alta Corte deste país que sempre se ocupou de julgar suas vidas, seus afetos e seus corpos.

É preciso garantir o alcance da representatividade no mais importante ambiente da administração da Justiça, o mesmo que dá legitimidade às interpretações constitucionais através das quais as mulheres negras foram alijadas por anos a fio do status de cidadãs.

Uma mulher negra para o STF!

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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