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De Xica da Silva à luta, como Zezé Motta honra histórias do povo negro

Zezé Motta mostra ataques de bolsonaristas contra ela após apoio a Lula - Reprodução/Instagram
Zezé Motta mostra ataques de bolsonaristas contra ela após apoio a Lula Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

27/06/2023 04h00

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Hoje celebramos Zezé Motta. Nascida em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, em 27 de junho de 1944, filha de um músico e de uma modista, a trajetória desse ícone nacional tem muito a nos ensinar sobre a história da luta do povo negro no Brasil.

Certamente a interpretação de Xica da Silva foi um marco não só em sua trajetória como atriz, mas também na teledramaturgia nacional. Aqui, cabe relembrar que Xica da Silva foi uma mulher real, nascida em 1731, no arraial do Milho Verde, interior da capitania de Minas Gerais. Na década de 1970, quando os estudos sobre a escravidão ainda ignoravam a atuação das pessoas escravizadas na construção social do país, a trajetória dessa negra mineira obteve destaque por ter nascido escravizada, conquistado ela mesma sua liberdade e ter se envolvido com um contratante de diamantes no Arraial do Tejuco, atual cidade de Diamantina.

Hoje é de conhecimento mais amplo que, assim como Xica, outras mulheres negras, a exemplo de sua contemporânea Rita Cebola, nascida na Bahia, casaram-se com homens poderosos e passaram a ostentar riqueza e poder no contexto de uma sociedade onde a cor da pele muitas vezes norteava as colocações sociais, como demonstrado nas pesquisas de Alanna Perônio.

Coube a Zezé Motta, atriz experimentada no teatro Arena, reviver Xica da Silva em filme de mesmo nome, dirigido por Cacá Diegues, estreado em 1976. O brilhantismo da protagonista lhe rendeu visibilidade, prêmios, imensa fama e viagens internacionais.

A atriz Zezé Motta tinha 34 anos em 1978 e já era famosa pelo sucesso do filme "Xica da Silva", de 1976.  - Divulgação/Arte/UOL - Divulgação/Arte/UOL
A atriz Zezé Motta tinha 34 anos em 1978 e já era famosa pelo sucesso do filme "Xica da Silva", de 1976.
Imagem: Divulgação/Arte/UOL

O sucesso explosivo de Zezé estava contextualizado numa década efervescente para os movimentos negros nacionais e internacionais, promovendo a valorização da cultura e beleza negras, além de exigir políticas de reparação e enfrentamentos contra o racismo. No Brasil, em plena ditadura militar, descatacam-se a fundação do grupo Palmares, em Porto Alegre, em 1971; do bloco Ilê Aiyê e do Olodum, fundados em Salvador, em 1974 e 1979, respectivamente; do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, do qual Zezé Motta participou, nascido em frente ao Teatro Municipal de São Paulo, entre outros. No exterior, podemos citar as independências de Angola, em 1971, da Guiné-Bissau, em 1974, de Moçambique e Cabo Verde, em 1975, e o ápice de aderências aos Panteras Negras, nos Estados Unidos, ao longo de toda a década de 1970.

"Não temos mais tempo para lamúrias!"

Experimentando o sucesso, Zezé Motta sentiu a necessidade de agir politicamente. Ela mesma chegou a afirmar que sentia dificuldades de elaborar reflexões contra o racismo que enfrentava desde muito cedo. Isso porque o glamour não havia lhe poupado de ataques violentos de cunho racista. A começar pela primeira nota que leu depois de ser escolhida para interpretar Xica da Silva: "feia, porém exuberante", afirmou um articulista.

No final da década de 1970, diante dessas agressões, Zezé se inscreveu num curso sobre cultura negra, ministrado pela ativista, antropóloga, socióloga e romancista negra, Lélia Gonzalez. Foi aí que ouviu esta intelectual afirmar que "não temos mais tempo para lamúrias!"

Sob os holofotes, Zezé olhou para os lados e se perguntou onde estavam os outros artistas negros e as outras artistas negras como ela. É bem verdade que haviam Ruth de Souza, Chica Xavier, Neusa Borges, Léia Garcia, mas eram muito poucas frente ao número de atrizes e atores brancos em cena.

Zezé queria mais! Como ela mesma declarou recentemente a Mano Brown, no podcast Mano a Mano, "quando as coisas deram certo pra mim, há 50 anos atrás, eu viajei muito pelo mundo, muito sucesso e, de repente, quando as coisas se acalmaram, eu falei ?cadê todo mundo?? E éramos? dava pra contar nos dedos o número de negros em cena. Eu falei ?alguém tem que fazer alguma coisa, né??. E aí eu percebi que não tínhamos que ficar esperando por um paternalismo vindo de um branco, por exemplo, porque isso não iria acontecer nunca?".

Foi assim que em 1984, Zezé Motta fundou o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, que visava promover artistas negras e negros, de diferentes seguimentos, para potencializar as suas inserções no mercado de trabalho. Este centro foi a formalização de uma solidariedade recorrente e marcante entre artistas negros em diversas áreas dos mundos do trabalho, inclusive nas Artes, como demonstram as investigações de Júlio Cláudio da Silva, ao refletir sobre a trajetória de Ruth de Souza no teatro.

Estas iniciativas fiavam-se à tantas outras maneiras de ajuntamento e auxílio mútuo entre pessoas negras ao longo da história do Brasil. Reunidas em quilombos, irmandades religiosas, corporações de ofício, sindicatos, frentes políticas e movimentos variados, mulheres e homens negros procuraram criar alternativas à escravidão, à violência e à morte.

Portanto, Zezé dava continuidade à essa herança, na medida em que estendia a mão aos seus semelhantes, a fim de construírem juntos uma rede de proteção à favor da arte e contra a marginalização e exclusão das pessoas negras.

"Fiquei empenhada em lutar, em vez de chorar pela causa"

Zezé Motta ainda hoje segue contrariando estatísticas depois de ter ajudado a desbravar caminhos ainda pouco acessíveis às pessoas negras. Sua história está entrelaçada à uma História maior, empenhada no enfrentamento ao racismo, em prol da inclusão e da equidade.

Zezé fez inúmeros outros trabalhos além de Xica da Silva, a poderosa liberta do Arraial do Tejuco, a exemplo de Corpo a Corpo (1984), Mãe de Santo (1990), a novela Xica da Silva (1996), na qual interpretou a mãe da protagonista, interpretada desta vez por Taís Araújo, Porto dos Milagres (2001), dentre outros. Além da TV, também brilhou no cinema e no teatro, sem esquecer a sua fascinante trajetória enquanto cantora e intérprete.

Merecidamente premiada diversas vezes e reverenciada, neste 27 de junho os parabéns vão pra você, Zezé, por toda a mulher que você é, por tudo aquilo que você representa, por tudo aquilo que você fez e continua fazendo por todo o povo negro deste país! Vida longa!