Símbolos, discursos e sentidos da experiência republicana no Brasil
O ano de 2023 tem marcado a retomada dos símbolos nacionais e da República por todas as brasileiras e brasileiros. A bandeira nacional e republicana tem retornado à identificação do povo sem distinções partidárias ou ideológicas.
O pavilhão auriverde, sem os ramos de cana e de café, sem a esfera armilar com a cruz da Ordem de Cristo esboçados por Jean-Baptiste Debret em meados de 1820.
Depois de 15 de novembro de 1889, o novo regime acrescentou um globo azul ao centro da bandeira nacional, semeando sobre ele as constelações do céu do Brasil, dentre as quais se passou uma faixa branca com os dizeres positivistas "Ordem e Progresso".
O novo símbolo aliava formas já consolidadas no imaginário popular ao longo do Império e introduzia modificações significativas, apontando a necessidade da preservação da ordem estabelecida - desigual, excludente e violenta - e o progresso - marginalizante, criminalizante e europeizado.
Era a República das oligarquias, das grandes reformas urbanas que expulsavam os menos favorecidos para as nascentes favelas, e do racismo científico que imputava toda a sorte de crimes e degenerações às populações negras e indígenas do país.
Esta bandeira republicana que todos nós aprendemos a amar e respeitar foi ressignificada por diversas personalidades que a empunharam em momentos memoráveis, a exemplo das várias vezes que Ayrton Senna a agitou em suas vitórias na Fórmula 1.
Há cerca de cinco anos, a bandeira nacional foi apropriada por apoiadores do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro para ufanarem-se sob a perspectiva conservadora, exigir intervenção militar com o ex-mandatário no poder e manifestar-se violentamente contra as instituições republicanas.
Diante disso, 2023 vem manifestar o resgate deste símbolo nacional, quer pela sua utilização por esse novo governo, quer pelas comemorações de várias vitórias de diversos atletas do país nos Jogos Pan-Americanos realizados há poucos dias no Chile.
Ou quer, agora, pelo seu uso orgulhoso por repatriados que experimentaram os horrores dos conflitos entre Israel e Hamas, que tem resultado na morte de muitos inocentes na Palestina. O drama de todos os repatriados, especialmente os dos últimos 32 que vieram da Faixa de Gaza, pousando com bandeiras do Brasil, nos sinalizam que todos cabem sob o pavilhão auriverde do país.
Os patrícios de cor e a exclusão
Esse entendimento se fez presente em outros momentos de nossa história. Desde 1888, e precisamente durante as primeiras décadas da República, os grupos negros vivenciavam a liberdade assegurada a todas e todos, ou pelo menos assim acreditavam.
Apresentavam-se como brasileiros, ou patrícios de cor, como se observa nos tantos veículos da imprensa negra. E denunciavam atos de preconceito de cor como uma afronta aos valores republicanos.
No entanto, foi apenas nos anos 1930 que viram-se muitos desses homens e mulheres negras como parte da nação.
Isso decorreu, sobretudo, da nacionalização da força de trabalho, por meio das medidas legais que resultaram na conhecida Lei dos Dois Terços, promulgada por Getúlio Vargas no fim de 1930. A Lei exigia que dois terços da força de trabalho das empresas fosse composta por trabalhadores nacionais.
Resultado de muita organização e reivindicação de trabalhadores organizados em sindicatos, muitos destes com forte presença negra, como aqueles envolvendo os estivadores e outros trabalhadores portuários bem como os ferroviários, por exemplo.
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Quero receberA exigência legal permitia, pela primeira vez, uma relativa vantagem aos trabalhadores negros, que viam-se na iminência constante de perder seus postos de trabalho para os imigrantes europeus. Este mesmo grupo viu-se protegido pela Consolidação das Leis Trabalhistas em 1º de maio de 1943. Há exatos 80 anos.
No entanto, nem todos os trabalhadores foram alcançados pela lei. Excluiu-se uma força grande de trabalho, a saber o emprego doméstico. Assim, a CLT, uma das grandes conquistas da República, foi marcada por um eixo de exclusão vinculado ao gênero. Nacionalizou-se o trabalho por um lado, mas por outro excluiu-se mulheres, em sua imensa maioria negras, e também a população rural.
A inclusão às avessas de povos indígenas
Desta forma, a República consolidava-se ao passo que construía mecanismos de exclusão da dita nacionalidade. Formas de exclusão da gente negra e indígena.
Aqui é importante dimensionar como os povos indígenas foram incorporados nos discursos nacionais da República. Apesar de não figurarem na Constituição de 1891, havia uma grande preocupação acerca da política indigenista no país com o intuito de integrar os "silvícolas" - termo utilizado à época para se referir aos indígenas - à dita comunhão nacional. Isso reflete na fundação, em 1910, da primeira instituição indigenista da República: o Serviço de Proteção aos Índios (SPI).
Este órgão foi organizado dentro de propostas positivistas e militarizadas, com especial destaque para a laicização da atuação indigenista que reforçava a separação entre Estado e Igreja.
O SPI vai estabelecer uma série de estratégias para aproximar os "silvícolas" da vida nacional e, assim, civilizá-los: expedições aos "sertões" da nação; atração e pacificação desses grupos; assistência tutelar que implicava em cuidados educacionais e médico-sanitários.
Isso visava a transformação desse contingente de nômades selvagens em lavradores sedentários que, destituídos de suas identidades étnicas, ajudariam no desenvolvimento da nação através do trabalho.
A partir da década de 1930, essa perspectiva civilizadora do SPI direcionada aos indígenas ganhou nova roupagem através da estratégia tutelar da nacionalização.
Ela ligava-se com as disposições do Decreto n.º 5.484 (1928), que estabelecia uma série de critérios para regular a situação dos indígenas nascidos em território nacional, e com experiências militares nas fronteiras internacionais do Brasil e a necessidade de nacionalizar as populações locais nesses espaços de disputa. Isso foi transmigrado para uma outra realidade de fronteira: as étnicas.
Nisso, o SPI passou a instrumentalizar toda uma pedagogia nacionalizante que incidia cotidianamente sobre as populações indígenas, em que se buscava incutir nos "silvícolas" a identidade brasileira e seus sentidos de pertencimento a partir do uso dos símbolos nacionais, sobretudo a bandeira e o hino.
Registros fotográficos das décadas de 1940 a 1960 dimensionam essas ações nacionalizantes efetivadas pelo SPI nos territórios indígenas sob sua gestão, sobretudo em torno do Dia do Índio (o 19 de abril). Nesta data - instituída pelo Decreto-Lei n.º 5.540 (1943) -, os postos deveriam realizar comemorações cívicas que reunissem todos os indígenas assistidos para participarem ativamente da "festa da sua raça", a qual reunia elementos folclorizados da cultura indígena e os símbolos nacionais como sinônimo da integração/assimilação que era almejada.
Aqui, as escolas do SPI também desempenhavam um importante papel nesse processo de nacionalização. Nos trabalhos escolares, encontram-se atividades que reforçavam esses signos da identidade nacional que eram ensinados desde a infância aos indígenas: desenhos da bandeira e do brasão nacionais, ditados que traziam a letra do hino nacional ou ainda trechos da história que endossavam a narrativa oficial da República - e que excluía gente negra e indígena como protagonista.
Portanto, a história dos indígenas durante o período republicano está ligada com dimensões violentas e arbitrárias que buscavam destituí-los de suas identidades étnicas e culturas ancestrais, tomando os signos nacionais enquanto instrumentos tutelares de assimilação.
Apesar dessa trajetória problemática, 2023 marca um novo rumo da relação do Estado com gente negra e indígena. A criação do Ministério dos Povos Indígenas e a reorganização da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, ambos conduzidos por indígenas, ou ainda a refundação do Ministério da Igualdade Racial, representam um novo compromisso desse país com agendas de luta e mobilização destas populações.
Nesses 134 anos de República no Brasil, reiteramos uma máxima importante que deve ser mantida no horizonte: Nada sobre nós sem nós!
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