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Opinião

Memorial busca resgate da memória negra na Amazônia, mas erra na narrativa

Primeira iniciativa política do Pará voltada à reparação histórica para a gente negra na Amazônia, a cidade de Belém deve receber ainda neste ano o Memorial da Escravidão.

A iniciativa representa a ponta de um grande iceberg, uma vez que pode potencializar um letramento histórico que faça (re)conhecer publicamente a historicidade da presença e resistência negra na Amazônia, cujas raízes e legados atravessam vários séculos na região, mas sofrem, paulatinamente, com práticas de apagamento e silenciamento pelas narrativas e outras ações políticas hegemônicas.

Isso é crônico. A visão exportada ao restante do Brasil enxerga muito mais uma Amazônia indígena do que uma Amazônia negra - ou mesmo uma Amazônia afroindígena.

A proposta do Memorial da Escravidão é da SEIRDH (Secretaria de Estado de Igualdade Racial e Direitos Humanos). Ele deve ser construído na área do Complexo Feliz Lusitânia, no centro histórico da capital paraense, demarcando politicamente o antigo local de desembarque, trânsito e comercialização de africanos escravizados em Belém - e seus deslocamentos compulsórios para outras partes da Amazônia.

O casario localiza-se na rua Padre Champagnat (na Cidade Velha), ao lado da Igreja de Santo Alexandre. De acordo com o parecer técnico que subsidia o projeto, o espaço é balizado pela existência de dois pelourinhos nessa área. O primeiro deles foi construído ainda no século 17, provavelmente quando da fundação e ocupação inicial de Belém; já o segundo pelourinho data da segunda metade do século 18. Ou seja, era zona de intenso desembarque de pessoas escravizadas de África na cidade.

A pesquisa da historiadora Marley Antonia Silva da Silva, professora do IFPA, dá importante subsídio ao parecer que instrui a proposta da SEIRDH para o memorial. Em sua tese de doutorado, ela recupera as dimensões da presença negra na Amazônia a partir das rotas do tráfico transatlântico de cativos africanos a partir da segunda metade do século 18, que conectavam de forma intensa o Grão-Pará (através de Belém) ao continente africano (através de portos em Angola, Bissau, Cacheu e Cabo Verde).

Mostra também como esses sujeitos, especialmente as mulheres negras, agenciaram suas vidas e articularam redes de sociabilidade e solidariedade para além das dores, marcas e violências do cativeiro, revelando outras experiências e dinâmicas sociais da gente negra em Belém, tanto no passado quanto no presente. Diante disso, bem como de seu ativismo, a historiadora foi convidada a elaborar o parecer, junto de outros dois professores da UFPA - um da área de história e um de georreferenciamento.

História negra da Amazônia em segundo plano

Existe um subdimensionamento da presença negra na formação social e cultural da Amazônia. Com isso, a história negra da Amazônia, sobretudo no pós-abolição, é ainda mantida em segundo plano perante uma historiografia tradicional.

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Como destacou Patrícia Alves-Melo nesta coluna, a expulsão de negros e negras da Festa do Círio de Nazaré a partir do século 20, diante dos processos de romanização e intensificação do controle eclesiástico sobre a festa, produziu uma nova interpretação pública da manifestação, que passou a ter feições mais embranquecidas. Assim, a interdição da gente negra no Círio provocou efeitos na construção de uma memória social que colocou esses sujeitos nos bastidores da celebração, fazendo apagar (ou silenciar) também algumas referências da relação com povos de terreiro e religiões de matriz africana em Belém.

Sobre tais silêncios e apagamentos, que reiteram o racismo e seus mecanismos de exclusão, uma série de estudos históricos se desenvolveram a partir da década de 1970 para reafirmar a presença negra/africana na Amazônia, através das dinâmicas do sistema escravista e dos muitos caminhos trilhados para alcançar a liberdade.

Esses estudos se constituíram tomando o desafio de revelar que essa presença foi numericamente considerável e socioculturalmente importante, de modo a produzir uma nova memória social sobre a população afrodescendente e sua participação nos meandros históricos na região. Vale destacar que o mesmo ocorreu no sul, no intuito de reivindicar o lugar do negro na história dessa região.

Qual a história que queremos contar?

Cabe-se fazer uma reflexão: por que intitular Memorial da Escravidão? Por que não Memorial da Liberdade ou da Presença Negra? Temos que problematizar isso, pois tratar os africanos e africanas traficados para cá, e seus descendentes, pelo jugo do cativeiro é cair na armadilha de reduzir a experiência e agência desses indivíduos à sua condição como escravizados.

Sabemos que a escravidão, apesar de sua dinâmica traumática e violenta, não conseguiu interditar um conjunto de relações e sociabilidades negras, a ser entendido também na chave dos ideais e projetos de liberdade. Logo, é necessário centralizar essa complexa dinâmica entre escravidão e liberdade que dá sentido à experiência negra antes, durante e após o 13 de maio de 1888, e que deve ser incorporada à narrativa do memorial para sensibilizar criticamente o público.

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Outro ponto é o uso do termo "escravidão". Ora, se é um Memorial da Escravidão, num sentido lato, então deveria remeter também ao processo de apresamento e escravização de povos indígenas, o qual sustentou por longos séculos a economia colonial (e pós-colonial) da Amazônia.

Segundo a historiadora Camila Dias, é preciso redimensionar o trabalho escravo direcionado a negros e indígenas, promovendo uma compreensão ampliada dos efeitos da escravidão sobre essas populações subalternizadas e desnaturalizando o próprio conceito de escravidão para públicos não especializados. Isso compete em estratégias de letramento racial e promoção de uma história pública antirracista que ampliem nosso direito à história, à memória e à cidade.

Logo, tais espaços de memória da população negra - como o Memorial - precisam contemplar uma reflexão crítica e sensível sobre o passado escravista e os legados estruturais do racismo, fugindo da espetacularização da violência e do trauma. E devem centralizar as formas de liberdade, associativismo e exercício da cidadania vivenciadas por sujeitos negros (homens e mulheres) escravizados, livres e libertos.

Fazer isso é garantir (e potencializar) que nossas histórias sejam contadas de fato, e de direito. E que se reconheça nossa existência, saberes e patrimônios ancestrais na região - ontem, hoje e amanhã. Aí sim estaremos falando de reparação!

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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