Raul Juste Lores

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Opinião

O dia da marmota urbanístico que afeta as cidades médias brasileiras

A Prefeitura de Ribeirão Preto anunciou que vai construir uma nova sede ao custo de R$ 200 milhões. Vai abandonar o Centro da cidade e ir para uma região só de casas, de baixíssima densidade populacional (foto).

Segundo o site do "planejamento" municipal, os 5 mil funcionários, prestadores de serviço e munícipes "só causarão movimento em horário comercial, pois moram em outros locais". O texto da empresa paranaense Econômica Engenharia, encomendado pela prefeitura, é um mar de pérolas.

Admite que a nova sede vai obrigar milhares de novas viagens de carro, no melhor estilo do centro administrativo em Belo Horizonte, que Niemeyer perpetrou para Aécio Neves. Da atual prefeitura à nova sede, uma viagem de ônibus pode levar até 35 minutos. Só a ida. Isso em uma cidade com menos de 700 mil habitantes.

Lembra quando a Prefeitura de São Paulo e a Assembleia Legislativa trocaram o Centro pelo Ibirapuera, e o governo do Estado saiu dos Campos Elíseos para o Morumbi? Há muitas e muitas décadas, correto? É nesse passado distante onde parece morar a mentalidade dos dirigentes de Ribeirão Preto. É o dia da marmota urbanístico.

Não é uma viagem no tempo rara. Boa parte das cidades médias do país (as que mais crescem, segundo o último Censo), vive em algum lugar do passado no urbanismo. Especialmente entre as décadas de 1960 e 70, as que mais desfiguraram as grandes cidades brasileiras, e esvaziaram seus centros históricos.

Paris e Tóquio, cidades da atual e da última Olimpíada, decidiram revalorizar os seus centros, reaproveitar estruturas já construídas, fortalecer áreas consolidadas. Como Barcelona fez em 1992. Não quiseram estádios e ginásios novinhos no meio do nada. Mas esse briefing não chegou à maioria das prefeituras brasileiras.

Deveria virar tema da campanha municipal, se a mídia deixar. Ah, e o centro de Ribeirão Preto está agonizando há anos. O prédio histórico da prefeitura, que deixou de ser sede em 2022, vai virar lugar de "saraus e exposições", se algum dia o restauro sair. Não vai me estranhar se a atual sede também virar "centro cultural".

Cidades ricas, como São José dos Campos e Franca, celebram a inauguração de pontes estaiadas desnecessárias, minhocões ou a abertura de novos shoppings. São José do Rio Preto e Joinville abrem distritos de inovação e parques tecnológicos em bairros onde não mora ninguém. Na separação entre bairros de morar, bairros pra se trabalhar, bairros de inovação, repetem o pior do urbanismo de Brasília. Só falta criar bairro pra se colocar só hotéis, um ao lado do outro.

Os funcionários da prefeitura de Ribeirão Preto, que hoje conseguem ir a pé ao Sesc local, ao teatro Pedro II, à Biblioteca Municipal e ate a Cervejaria Pinguim, irão para uma avenida vazia sem restaurantes ou serviços por perto. O único comércio próximo da futura prefeitura, a cinco quadras, é uma filial da Sorveteria do Geraldo (uma delícia, mas sorvete sozinho não faz verão).

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Em um momento que o comércio de rua sofre tanto quanto o Centro da cidade, milhares de potenciais consumidores serão retirados dali.

Zaragoza, a anti-Orlando

Zaragoza, quarta maior cidade da Espanha, com 700 mil habitantes: bondes modernos, vida de rua e sede da Amazon
Zaragoza, quarta maior cidade da Espanha, com 700 mil habitantes: bondes modernos, vida de rua e sede da Amazon Imagem: Raul Juste Lores/UOL

Acabei de postar um vídeo no meu canal no YouTube, apresentando um caso pouco conhecido de cidade média que cresceu muito, atraiu centros logísticos da Amazon, mas que é caminhável. Zaragoza, na Espanha. Uma anti-Orlando, conhece?

Muitos copiam Dubai e Orlando, quando culturalmente temos bastante mais a ver com Zaragoza (e não apenas na religião, no futebol, no gosto por festa na rua, nas famílias hiper próximas). Ao contrário do isolamento e da segregação típicas das cidades médias dos Estados Unidos, a espanhola Zaragoza tem dezenas de bares e restaurantes nas ruas estreitas da região do Tubo, onde pessoas paqueram, comem petiscos e aproveitam a happy hour. Como no Brasil.

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Felizmente, não vivemos em um deserto (dos de areia), onde as mulheres locais vivem presas em casa ou totalmente cobertas, obedecendo o que o marido quer. Dubai até parece um progresso para a vizinhança do Oriente Médio. Não para as cidades brasileiras, claro.

Sendo uma cidade pouco turística, e que cresceu bastante dos anos 60 para cá, Zaragoza ainda é uma cidade industrial e de serviços. Só a Amazon tem quase 2 mil funcionários lá. A explicação da gigante empresa americana para se instalar ali, além do m² mais barato que em Madri ou Barcelona, foi a excelente qualidade de vida.

Não consigo imaginar jovens executivos americanos se mudando para lugares onde as únicas oportunidades de lazer sejam shoppings e rodízios de sushi e carne aos finais de semana. E nada mais. E Zaragoza tem a mesma população de Ribeirão Preto.

Seguro só dentro de uma fortaleza

A defesa das cidades médias, no Brasil, ignora um paradoxo: como esses lugares, supostamente tão tranquilos e seguros para se morar e criar famílias, exigem que se viva em condomínios fechados com portaria e muralhas? Como crescerão essas crianças saudáveis sem saber andar sozinhas, vivendo apenas entre iguais, precisando de carona para qualquer lugar? Terão empatia para o diferente?

A se acreditar nas estatísticas, Sinop, Sorocaba, Cascavel, Itu, Jundiaí e Vinhedo são cidades muito seguras, de matar de inveja até as congêneres americanas, de Baltimore a Saint Louis. Por que então se encerrar no formato condomínio fechado — ninguém na rua — carro para tudo, porteiros com terno preto e gravata no verão, nesse mix de status e medo?

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No cinema e nas novelas, nos dizem que essas cidades de 300 mil, 500 mil habitantes, são mais humanas, caminháveis, onde as pessoas se conhecem, sem pressa. Bem diferente do que estão se transformando.

Será que o orgulhoso morador de São José dos Campos ou Uberlândia não acha estranho que ele não consiga fazer nada sem carro? Enquanto moradores da "violentíssima" São Paulo, de bairros nobres a mais populares, vão à farmácia, ao veterinário, à academia e à lanchonete a pé?

Cidade de Orlando, Flórida, Estados Unidos
Cidade de Orlando, Flórida, Estados Unidos Imagem: Getty Images/iStockphoto

É uma pena que a reacionária Orlando, na Flórida, seja o modelo para tantas cidades médias no Brasil, como se o mundo fosse um parque de diversões (não é). Espalhadíssima, onde tudo é longe, é uma cidade que maltrata pedestres, ciclistas ou quem depende do transporte público.

A cidade de São Paulo, da Cantareira a Parelheiros e às represas Billings e Guarapiranga, é oito vezes menor que o território da Grande Orlando, na Flórida, onde moram apenas 2,5 milhões de habitantes, um quinto da Pauliceia. Desperdício de terra é isso. É asfalto e mais asfalto sobre terra antes virgem.

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Se contarmos apenas a cidade de Orlando, sem suas vizinhas, o espraiamento é mais chocante. Com 307 mil moradores, tem uma densidade demográfica equivalente a 1/4 da do bairro do Pacaembu, aquele, bem vazio, na região central de São Paulo. Esqueça a possibilidade de ir tomar um cafezinho na esquina sem carro. Imagina se chineses e indianos quiserem criar cidades como Orlando, e não como Zaragoza? Não sobrará uma floresta no mundo. Vão ter que asfaltar meio planeta.

Como nada é por acaso, Orlando acaba de aprovar uma via expressa de 16 quilômetros de extensão, ou 5 avenidas Rebouças de comprimento, cortando uma área de preservação ambiental. Se for para buscar inspiração para as cidades que mais crescem no país, há lugares muito mais respeitosos com o futuro do planeta, com qualidade de vida sociável e sem medo, com diversão menos previsível.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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