Raul Juste Lores

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Opinião

A deprimente Dubai na Barra Funda chamada Jardim das Perdizes

Atenção, Barra-Funders: o CEO da empresa responsável pelo condomínio Jardim das Perdizes promete muitas novas torres ali até 2026.

"Quem conhece nosso bairro planejado já o considera uma mini-Dubai. No futuro próximo, isso ficará mais evidente", descreveu, pimpão, em seu LinkedIn.

Dubai é referência e sonho para muitos líderes do mercado imobiliário. São incontáveis as viagens "técnicas" para lá, comandadas por gurus com deslumbramento e desinformação em altas doses. Imagine se responsáveis por museus e bienais visitassem mais a galeria de Romero Britto em Miami do que o MoMa ou o Prado. Ou que chefs fizessem excursões para aprender com as tendências do McDonald's e do Paris 6 (com a desculpa da burrice orgulhosa: "questão de gosto"). Ou missões de segurança pública gastando milhas para aprender com o governo baiano.

Em todas as estatísticas mundiais, da revista Nature ao Our World in Data, os Emirados Árabes Unidos (onde fica Dubai) aparecem como um dos lugares mais poluidores do mundo per capita. Cada morador de Dubai emite quatro vezes mais gás carbônico que a média mundial. Ou sete vez mais que o morador de Barcelona, esse povo que adora andar a pé, de bicicleta ou de metrô.

As cidades indianas e chinesas levam a má fama, mas Dubai polui muito mais o planeta, com suas longas distâncias fabricadas, uso exclusivo de carro, ar condicionado e shopping para tudo. Se 4 bilhões de chineses, indianos e africanos seguirem o modelo Dubai, o planeta vai se asfixiar. Para não entrarmos em detalhes nada menores de direitos humanos, empregadas filipinas sendo violentadas, operários do Bangladesh em trabalho semiescravo ou a estética dos sultões desesperados por parecer chiques.

Perdizes fake

Mas há muita coerência no discurso de quem construiu o Jardim das Perdizes, encravado na Barra Funda, a metros da Água Branca e da Marginal. As ruas principais se chamam Paul Klee e Pablo Picasso (mas aí você olha para a "arquitetura" dos prédios e não reconhece vanguarda alguma, muito menos arte). A propaganda do empreendimento diz que fica entre Perdizes e Pompeia, mas até no nome o empreendimento é fake. A programação cultural ali é chamada "JP Experience". Bem longe das Perdizes de verdade, com seus usos mistos, comércio por todos os lados, alta densidade e quarteirões compactos.

Em um mundo onde a responsabilidade individual é tão necessária, que a consciência ambiental é urgente e que parte da sociedade paulistana não aguenta mais monstrengos novos em seu bairro, quem perpetrou o Jardim das Perdizes tem muito para refletir. Quem projetou, quem construiu, quem investiu, quem aprovou e também quem comprou.

Condomínio Jardim das Perdizes fica na Barra Funda, zona oeste de São Paulo
Condomínio Jardim das Perdizes fica na Barra Funda, zona oeste de São Paulo Imagem: Raul Juste Lores/UOL
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Os prédios, apesar de vizinhos e em um empreendimento isolado, são amuralhados. Sem integração entre si. Ninguém confia em ninguém. Os térreos dão as costas para a rua. A inexistência de comércios e até de esquinas, nessa versão muito piorada de Brasília, obriga que tudo seja feito de carro. Parece uma versão atual, logo, mais atrasada, do que se construiu no Morumbi nos anos 1980s. Mas quando não se critica, ninguém aprende. E se fatura um bom dinheiro com a ignorância completa do que seja viver em sociedade.

Todas as torres mal-ajambradas — nas fotos, nota-se como a pintura barata não esconde a qualidade da construção — são viradas para o fechado parque de arbustos, dando as costas para São Paulo. O pobre pedestre que caminhe pela avenida Nicolas Boer verá apenas um paredão branco. Se acontecer algum crime ali, a mini-Dubai é bastante responsável por mais um espaço ermo da cidade. O desenho do empreendimento é o de uma bolha ovalada. Com os prédios dando as costas para a cidade. Imagine se Pinheiros ou Vila Mariana fossem cercados por murões brancos apra quem "é de fora"? Higienópolis ou Santana contornados por muros de cemitério? Se todo paulistano adotasse esse urbanismo cada-um-por-si e não caminhasse para nada, o trânsito e o nosso ar seriam muito piores. Mas nossa sociedade não é muito chegada a refletir sobre causa e efeito.

Uma das maiores tragédias brasileiras é a inexistente disposição das elites econômicas, políticas e culturais em tentar criar cidades minimamente habitáveis. E olha que aqui estou falando de um empreendimento dito de "alto padrão", ainda que seja quase impossível ver qualquer coisa sofisticada por ali. É pagar por um jantar no Maní, mas receber o bandejão do Graal.

Fernanda Montenegro ou Gwyneth Paltrow?

Com 250 mil m² de terreno e dezenas de prédios construídos nos últimos dez anos, bastaria alguma inteligência e sensibilidade para virar algo parecido a um bairro. Sim, com ruas que pudessem ser continuadas, fora do empreendimento. Que criassem continuidade com o resto do bairro. Mas se esqueceram de chamar bons arquitetos e urbanistas. Os responsáveis são um time de anônimos, merecidamente. De terceira linha. Aposto que até os moradores não sabem quem projetou o próprio lugar onde moram, essa versão presunçosa do Minha Casa Minha Vida. O desinteresse em saber quem é o responsável por sua própria casa se nota.

Em uma época em que se faz um Google até para olhar a carinha do restaurante antes de ir jantar, sempre surpreende que tanto paulistano de alta renda não faça a mínima lição de casa para checar o portfólio da incorporadora e dos arquitetos. Bem, se você vê os horrores que essa turma já aprontou e não se incomoda, você já tem nível do americano que preferiu a interpretação da Gwyneth Paltrow a da Fernanda Montenegro para Oscar de melhor atriz. Seu paladar é inexistente.

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Uma pequena nota para o suposto "parque público" no meio, onde as árvores teimam em não crescer (deve ser praga da Nossa Senhora do Urbanismo). Tudo é feito para se evitar forasteiros. Os banheiros públicos estão eternamente fechados, ambulantes são proibidos e não há uma lanchonete à vista. Nem carrinho de água de coco. É um parque-quintal dos apartamentos, que a prefeitura na gestão Kassab chancelou, e nenhum prefeito posterior se atreveu a mexer nas normas do "condomínio". A lista de proibições é vasta. Vale indagar as autoridades: como um parque público, com plaquinhas da prefeitura, tem tantas proibições.

A segurança é tão ostensiva, com motoqueiros uniformizados passando a cada momento, que o lugar tem o relaxamento de um quartel. Há outra ironia no marketing de "bairro mais seguro" de São Paulo. Se não tem ninguém na rua, e as entradas dos prédios parecem penitenciárias, qual a vantagem de se sentir seguro escondido no vigésimo andar?

Vias internas do condomínio tem nomes de personaldiades como Pablo Picasso
Vias internas do condomínio tem nomes de personaldiades como Pablo Picasso Imagem: Raul Juste Lores/UOL

(Pequeno alívio para o morador do Jardim "das Perdizes" que chegou até aqui: não duvido que você seja uma boa pessoa. Que recicle o lixo, que pague os impostos, que seja bom cidadão, que doe sangue. Deve frequentar cinemas de rua, teatros e até a Paulista aos domingos. Certamente você vai sempre que pode ao centro de São Paulo para defender a historia da Pauliceia. Não pega o carro dez vezes por dia, até para cobrir pequenas distâncias porque está com preguiça. Mas colaborar para que São Paulo seja uma cidade melhor exige um esforço e um compromisso acima disso.

Se você está entre os 10% mais ricos da cidade, deveria ter alguma ideia de responsabilidade cidadã. A cidade é formada por milhões de pecinhas. A pecinha que você patrocinou se nega a fazer parte do todo. Se você só investiu tempo em escolher sofá, cortina, medir o tamanho da guarita ou pensar nos revestimentos do banheiro, você não pensou no macro. São Paulo.)

Em uma entrevista, o CEO da Tecnisa afirma que a empresa também quer entrar na produção de prédios para o Minha Casa Minha Vida. Como várias outras gigantes da incorporação ficaram bilionárias fazendo prédios ainda piores que esses, diante do beneplácito do governo federal e da Caixa, seria interessante um maior escrutínio, uma maior exigência de quem recebe dinheiro público. O paulistano é tão desinteressado em arquitetura e urbanismo que provavelmente nem se incomodou com a promessa de uma nova Dubai.

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* O maior objetivo da coluna que estreio hoje aqui no UOL é combater o provincianismo urbano que ataca as elites que constroem as cidades. Não ter ideia do que é feito no mundo e dos progressos urbanos faz que sejamos obrigados a viver em cidades tão sofríveis. A desinformação e a falta de boas referências já fizeram vitimas demais. Que não tenhamos que nos espelhar em Dubai.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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