Boulos e a esquerda brasileira têm muito a aprender com Kamala Harris
Kamala Harris cresceu a quadras do quartel-general do grupo radical Panteras Negras. Participou, ainda no colo dos pais, de passeatas contra o racismo e a violência policial em Oakland, uma das cidades mais violentas dos EUA (até hoje). Seu pai, economista jamaicano que imigrou para a Califórnia, era considerado marxista demais quando lecionou na UnB, em Brasília, nos 1990s.
Esse histórico alternativo não impediu que Kamala Harris ganhasse fama como promotora linha dura, que colocou muita gente na cadeia. O livro mais conhecido da candidata a presidente é sobre segurança, "Smart on Crime" (ser inteligente contra o crime, em tradução livre).
Mesmo sendo o único candidato de esquerda com apoio de Lula, diante de uma direita fragmentada, e o único que já concorreu ao mesmo cargo na eleição passada, Guilherme Boulos (PSOL) patina nas pesquisas (magros 23% no Datafolha de ontem). E o tema mais importante para o eleitorado paulistano hoje é segurança, mesmo fora das atribuições do prefeito.
Mas poucos assuntos deixam a esquerda tão afônica quanto falar de segurança e violência.
Por décadas, o PSOL de Boulos chama a PM de fascista (menos a PM baiana, a que mais mata no país). A polícia de Alckmin, Doria ou Tarcísio? Sempre fascista. "Intelectuais" petistas dizem que, enquanto a desigualdade social não terminar, teremos muita violência, sem apresentar qualquer remédio contra o bangue-bangue até a disparidade ser reduzida.
Mas, e quando a desigualdade cai, e a criminalidade ainda assim cresce (como aconteceu sob a primeira era Lula, de 2003 a 2010), o que fazer?
Só entre Lula e Dilma foram anunciados cinco diferentes planos nacionais de segurança (o sexto deve ser lançado agora), mas ninguém lembra de qualquer efeito concreto deles. Alguns dizem que furto de supermercado, de celular, nem deveriam ser penalizados. Imagine como isso cai nos ouvidos do dono da quitanda ou do boteco que é roubado, muitas vezes, a mão armada. Ou dos milhões de paulistanos que não podem trabalhar na rua, porque têm que esconder o celular no bolso. Celular é muito mais que um aparelho, é a chave para muitas poupanças.
Boulos herda o passivo da esquerda nacional em parecer leniente ou apenas incompetente com a criminalidade. Várias ocupações (ou invasões) de imóveis no Centro, daquela no cine Marrocos (desocupada a pedido do então prefeito Haddad, em 2016), estavam nas mãos de gangues. Justificar toda e qualquer invasão, como Boulos fez por anos, não o ajuda. Até prédios da USP no Centro já foram tomados por sem-teto. Será que a USP é considerada uma especuladora pelo movimento?
Segurança é um raro tema que importa para todas as classes sociais no Brasil. Arame farpado e muros altos são encontrados em Perus e na Vila Nova Conceição, no Jabaquara e no Anália Franco. É o medo que deformou as cidades brasileiras, transformando-as em lugares desertos, sob um toque de recolher informal.
Um longo perfil publicado no New York Times diz que Kamala "desagradou a extrema esquerda, mas também a polícia", em seus mandatos como procuradora-geral de San Francisco e da California. Dizia que todo mundo precisa saber que crimes e contravenções têm consequências. Mesmo conhecendo o contexto, era contra passar a mão na cabeça. E mandou multar pais cujos filhos faltassem muito à escola, adolescentes que nem trabalhavam, nem estudavam.
Kamala era acusada de "punitiva". Mas a então procuradora também dizia que o orçamento da polícia era alto demais e que educação e serviços comunitários precisavam de mais recursos.
Pena que o antiamericanismo juvenil que domina PSOL e boa parte do PT nos distancie de figuras como Kamala. Nossa esquerda-teen prefere ter cumplicidade com figuras como Maduro, Chávez, Putin e os aiatolás do Irã. Nenhum deles têm algo a nos ensinar.
Boulos até pode ser diferente da esquerda velhíssima-guarda que comanda o país, mas sua imagem de radical não será atenuada apenas publicando vídeos com sua família de classe alta. Em temas como Venezuela, Sabesp, invasões de terras ou política econômica, Boulos tem o mesmo discurso de cinco ou dez anos atrás. E em relação à polícia, como será sua conversa com o governo estadual, com a PM?
Bahia, a garota antipropaganda
A Bahia é a garota antipropaganda da esquerda nos temas de segurança pública. O PT governa o estado desde 2007. Tem a polícia que mais mata no país. A policia baiana matou 354 pessoas em 2015; no ano passado, foram 1699. Quase quintuplicou. A Bahia é o segundo estado com maior número de assassinatos per capita do Brasil (mais que o dobro do estado do Rio de Janeiro, onde se localiza a Baixada Fluminense, tá ligado?).
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Quero receberA Bahia é 50% mais violenta que Honduras. Seis das dez cidades com maior número de homicídios no Brasil estão lá. O governador que assistiu a essa escalada na Bahia, Rui Costa, virou um dos braços-direitos de Lula.
Até 2005, a Bahia sofria 25 homicídios por 100 mil habitantes, em média, por ano. De 2007 para cá, só cresceu. No ano passado, foram 45 por 100 mil, ou quase seis vezes mais que o estado de São Paulo. Vamos frisar que a Bahia não é o estado mais pobre do país (Maranhão, Paraíba, Piauí, Ceará, Sergipe e Alagoas têm renda per capita menor), muito menos o mais desigual (honraria nas mãos de Paraíba, Piauí e Distrito Federal), apesar de ser — de longe — o mais violento, junto com o Amapá. São Paulo e Bahia têm quase o mesmo índice de desigualdade (São Paulo, um pouco pior que a Bahia), mas os paulistas vivenciam apenas um sexto dos homicídios dos irmãos baianos.
Ironia que deve doer para o militante não-chegado a dados: o estado mais seguro do Brasil, o mais igualitário no índice GINI, o de melhor IDH e o que tem a menor força policial do país per capita, é, pasmem, Santa Catarina. Comumente chamado de "nazista" para os adeptos de calúnias impunes.
A direita brasileira tampouco tem oferecido soluções melhores ou mais aprofundadas, mas não evita o tema: fala dela sem parar — dá a entender que se preocupa com violência.
A polícia norte-americana compartilha os mesmos vícios e má reputação da brasileira: um negro é abordado de forma radicalmente mais agressiva que um branco; protela ou evita qualquer punição a casos exagerados de abuso de autoridade (uma das melhores séries americanas de todos os tempos, "The Wire", mostra bem isso). Mas Kamala Harris repete sem parar que "segurança é fundamental". Já disse que as pessoas que mais querem policiamento e penas duras nos EUA são as "black moms" (mães negras), preocupadas com seus filhos e seus bairros.
Hillary Clinton permitiu a chegada de Donald Trump ao poder quando afirmou que metade do eleitorado de Trump era um "monte de gente lamentável" ("basket of deplorables"). A pragmática Kamala tem chance de conquistar alguns estados do interiorzão americano ao ser menos arrogante.
Por muitos anos — as diversas entrevistas no YouTube nos recordam — Boulos chamou a classe média paulistana de "fascista", seguindo a escola Marilena Chauí. Assim como nem todo mundo de esquerda é comunista, nem todo mundo de direita é fascista (mas quem defende a ditadura cubana ou a ditadura de Médici e Geisel em 2024 não tem muita moral para difamar o coleguinha).
Cada vez que a esquerda brasileira chama de fascista um eleitor que quer mais segurança, torna-se menos viável em São Paulo. A última eleição paulistana onde a esquerda teve algum favoritismo foi em 2012. Em 2020, Boulos perdeu por 20 pontos percentuais para Bruno Covas (40,62% conta 59,38% dos votos válidos). Haddad perdeu sua reeleição para Doria por lavada, 16,70% contra 53,30% do ex-tucano.
Enquanto os autoproclamados progressistas acharem que segurança é desimportante ou se negarem a ouvir maiorias, milhares de eleitores seguirão quem fala de segurança o tempo inteiro. Se Boulos não fizer a virada para o centro que não conseguiu nos últimos quatro anos, poderá ser mais um a ajudar a eleger Pablo Marçal.
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