Raul Juste Lores

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Opinião

O surpreendente luxo do 'lado errado' da av. Paulista, longe da Faria Lima

Os mármores dos banheiros são tão esfuziantes que até hóspedes comportados ficam fotografando os mictórios. Na entrada do hotel, a tapeçaria é habitada por borboletas, libélulas, besouros, grilos e formigas, saídos da imaginação da maior artista brasileira viva, Regina Silveira. Nos tapetes, os insetos são maiores que os pés que passam por ali, e até viajantes com muita milhagem param para admirar.

O Hotel Rosewood vive cheio, assim como seus restaurantes e salão de festas. A Torre Jean Nouvel, coberta por árvores grandes, teve suas unidades vendidas a preços de Pinheiros, Itaim e Jardins (mesmo quando o mercado imobiliário paulistano dizia que o luxo não funcionaria "no lado errado da Paulista").

O complexo chamado Cidade Matarazzo ganhou há um mês a primeira filial no Brasil do clube privê britânico Soho House, que reúne criativos e beldades variadas nas principais capitais do mundo. E no início de setembro, o centro cultural no meio do empreendimento terá uma mostra com obras do artista indiano-britânico Anish Kapoor, que é disputado por museus espertos.

O centro cultural tem magníficas paredes de peroba-rosa, madeira coletada na demolição de fazendas. "Isso, sim, é luxo", descreve o curador Marcello Dantas. Enquanto isso, na Faria Lima, a única obra de arte pública conhecida é aquela baleia oca, de autoria desconhecida. Um sítio bandeirante de pouco uso. Banqueiros patrocinaram um tourinho amarelo de fibra de vidro em local irregular. Onde mesmo fica o luxo?

Cidade Matarazzo
Cidade Matarazzo Imagem: Raul Juste Lores/UOL

O excêntrico empresário francês que comanda a empreitada, Alex Allard, certamente não se informou sobre o que é luxo nessas "missões técnicas" a Miami e Dubai, desenhadas para executivos deslumbrados. Allard já frequentava os ambientes artísticos europeus e brasileiros há muitos anos, e se cercou de um time de primeira.

Outros artistas do primeiro time, como Sandra Cinto, Walmor Correa, Daniel Senise e Cabelo também criam fantasia nos ambientes do Rosewood, e muitas vezes ofuscam o design do famoso Philippe Starck, responsável pelos interiores. Foi até dono da mítica revista L'Architecture d'Aujourd'hui, certamente desconhecida entre quem constrói em São Paulo.

Cafonice sem pedigree

O mercado dito de alto padrão em São Paulo anda se afogando em piscinas com ondas, tapetinhos dourados da Versace e arquitetura barata. Em Balneário Camboriú e São Paulo, incautos compram imóveis em prédios "Tonino Lamborghini", achando que têm alguma ligação com os carros de luxo.

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Tonino só faz relógios, óculos e cosméticos desde a década de 1980. Seu pai, Ferrucio (o dos carros, de fato), desfez-se da montadora no longínquo 1972. Ou seja, até a cafonice não tem pedigree. Nada melhor para incorporadores preguiçosos que uma clientela tão desinformada.

Mármore e tapeçaria na recepção
Mármore e tapeçaria na recepção Imagem: Raul Juste Lores/UOL

Também no circuito Balneário-Dubai-São Paulo, prédios com a assinatura Pininfarina dizem seguir o "design oficial da Ferrari". Basta um Google para saber que a escuderia italiana não recorre aos serviços pininfariners há mais de 12 anos. Sem trabalho, decidiram fazer prédios com arquitetura simplória para gente desesperada por status. É impossível encontrar um edifício Pininfarina em Nova York, Londres, Tóquio ou Madri, ou qualquer outra metrópole adulta.

Quando estreei meu canal no YouTube, há exatos três anos, abri o São Paulo nas Alturas com uma entrevista com Alex Allard.

Minha caixa postal foi inundada de comentários de incorporadores locais com o cotovelo já ardendo. "Isso nunca vai ficar pronto", "o luxo não vai para o lado errado da Paulista", "nenhuma marca vai", "as contas não fecham", "esse cara é louco". Mesmo estudando arquitetura e urbanismo há quase trinta anos, tenho dificuldade em recordar algum grande feito arquitetônico erguido por gente careta e convencional. Sorte a nossa Allard ter escolhido São Paulo. Até porque diversos construtores e incorporadores locais faliram, vão falir ou não dão nenhum retorno seus investidores, mesmo sem deixar qualquer obra de qualidade como legado.

Luxo é uma palavra que desperta gatilhos, pela ostentação selvagem ou pela desigualdade brasileira. Mas é tão milenar quanto a humanidade. Que o digam Cleópatra e Nefertiti. A disputa entre o rei Felipe 2º e o arcebispo de Toledo rendeu o palácio de El Escorial e uma catedral recoberta por El Greco. Na China de Mao, onde todos eram obrigados a ter o mesmo penteado e a se vestir igual, o consumismo explodiu quando os chineses tiveram um pouco mais de liberdade.

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Cidade Matarazzo
Cidade Matarazzo Imagem: Raul Juste Lores/UOL

O luxo pode irrigar beleza para fora de seus privilegiados. Cidades que não são capitais nacionais dependem muito das burguesias locais para terem seus ícones. Sem presidentes ou ditadores, não surgem palácios ou mausoléus. Barcelona ganhou três vistosos cartões postais quando Antoni Gaudí foi contratado para fazer os luxuosos palacetes das endinheiradas famílias Batlló, Milà e Güell.

Os Rockefeller em Nova York levantaram o deslumbrante complexo art déco de multiuso que leva seu nome em plena depressão americana. Dois anos antes, já tinham criado o MoMa. Chicago, Xangai e Milão, outras cidades não capitais, também tiveram burguesias ousadas. No caso de São Paulo, para se lembrar de exemplos de grandes ícones da arquitetura erguidos pela burguesia local, é preciso de uma máquina no tempo.

Voltando para a Bela Vista, não quer dizer que o Cidade Matarazzo esteja pronto. Ajustes são bastante necessários, a começar pela relação com a calçada. A entrada do hotel é um túnel para embarque-desembarque, longe da calçada e dos feíssimos prédios da FGV. Tem arte, tem murais, tem até estantes com livros, mas é um túnel. Não é legal.

Do outro lado, o prédio corporativo Aya (ex-Ayahuasca) tampouco tem entrada para a rua. Como abriga "negócios verdes", não é nada legal que receba melhor quem chega motorizado. Com sua fachada forrada por cipós de concreto, está a anos-luz esteticamente das torres espelhadas e texanas da Faria Lima, o que é fácil. Mas também precisa se abrir.

Há duas oportunidades à vista para tal correção. Os muros das ruas Itapeva e Rio Claro acabam de ser demolidos e são prometidas fachadas ativas e comércios mais populares nas calçadas. Essa ocupação pode render outra aula ao mercado local, onde shoppings colocam restaurantes-filiais de cara para os estacionamentos, e deixam o paredão para rua.

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O complexo está conseguindo fazer um quase-calçadão na Rio Claro, depois que uma associação de uma moradora só tenha atrasado os planos. Se deixar arquitetura e arte à vista, já terá feito algo bem diferente da nossa burguesia atrás dos muros.

(P.S..: Quem quiser continuar refletindo sobre o que é luxo urbano, fiz um vídeo sobre a Recoleta, em Buenos Aires. Luxo que resiste a crises.)

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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