Os subúrbios 'Alabama' se alastram pelo Brasil, e tem gente que se orgulha
Hélio Mítica, o urbanista responsável pelo "desenho" do Jardim das Perdizes, aquela bolha na Barra Funda que é um atraso em arquitetura e urbanismo, respondeu à minha crítica da semana passada.
Resumidamente, ele culpa as leis, a Prefeitura de São Paulo, a sociedade "que não estava preparada" para comércios no térreo, estímulo ao pedestre ou mix de usos naquela época (no longínquo 2010!). E aproveita para bajular a Tecnisa, a incorporadora nada conhecida pela arquitetura, mas que deve lhe pagar muito bem. Ah, o célebre Hélio ainda se ofereceu para me ensinar urbanismo.
Só que verificando os atuais projetos dele, pelo Brasil inteiro, até em praias (pobre Bicanga, no Espírito Santo!), não se vê nenhuma autocrítica, nem revisão do urbanismo segregador e ultradependente do carro. Veja as fotos dos seus projetos. "Controle de acesso" é um dos termos mais usados. Atenção para a quantidade de ruas sem saída, curvas e cul de sac (ruas com balão de retorno).
De cinturões de arbustos para isolar os limites do empreendimento. É para que ninguém queira andar ou usar o bairro como passagem para o seu carro. Mesmo que você more na mesma cidade média ou pequena, tudo é arquitetado para afugentar quem é de fora. Podem até não ter um portão com cancela e guarita, mas dispõem de várias muralhas mentais.
As ruas sinuosas dessas bolhas antipovo fazem a viagem do ponto A ao ponto B ficarem mais lentas. Qualquer trajeto fica maior, o que aumenta a emissão de CO2. Como nesses feudos abundam SUVs, 4x4 e jipes, imagine o estrago no meio ambiente. Por ter pouca gente por km², o transporte público é inviável financeiramente.
Segundo estudo do instituto Brookings com a Universidade Berkeley, publicado ano passado, a emissão de gases nesses bairros de casarões enfileirados é quatro vezes maior do que em uma cidade grande. O desperdício não é só de espaço. Ainda gastam mais água e exigem que prefeituras levem até longe cabeamento, energia, serviços.
O transporte público para empregadas, babás e faxineiras também ficará por conta dos pagadores de impostos que nem moram lá. A maioria pagando pelo isolamento da minoria.
A hipocrisia salta quando moradores desses bairros cheios de obstáculos exigem mais pistas e avenidas em linha reta e expressas para suas viagens fora do feudo. Querem avenidas sem semáforos, nem faixas de pedestres. É comum nessas estradas urbanas a instalação de passarelas.
O pedestre que dê uma volta maior em um espaço inseguro para que o morador do feudo possa acelerar.
Sim, morador de bairro com ruas sinuosas que não quer trânsito alheio, ama uma estrada em linha reta quando precisa ir trabalhar, fazer compras ou qualquer outra coisa fora do condomínio. A ideia é jogar o trânsito para os outros. Na minha chácara, Granja ou Alphaville, não venham. Mas vou atravancar suas marginais, Bandeirantes e Rebouças numa boa.
Urbanismo Alabama
Nem todos esses condomínios são fechados —aliás, nem o Jardim das Perdizes o é. Mas, como as torres corporativas da Faria Lima ensinam, não basta não ter muro nem grade para se tornar convidativo ou inclusivo. O parque "público" do Jardim das Perdizes, por exemplo, não tem banheiros ou alimentação, nem barraquinha de camelô, tudo para reduzir a permanência dos forasteiros.
Esse Urbanismo-Alabama tem sido normalizado no Brasil. Nos EUA, no estado do Alabama da década de 1960, usavam-se expressões como "é o que os moradores querem", "nós precisamos ter o direito de escolher com quem conviver", "só quem mora aqui deve decidir" ou "segurança em primeiro lugar" para se justificar a segregação racial. No Brasil, além de racial, é econômica. Os muitos empregados e caseiros que se virem.
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OLHAR APURADO
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Quero receberRessalto que não são só os arquitetos do Area Urbanismo que projetam tais bolhas. É a regra nesse mercado imobiliário horizontal segregador. Mas os urbanistas que faturam com isso não podem se fazer de vítimas do sistema apenas. São cúmplices.
Nas postagens do tal escritório, abundam frases como "não importa o tamanho da gleba, sua complexidade ou localização; nós desenhamos sim!". Ou "é importante mencionar que nós possuímos uma longa lista projetos de loteamentos residenciais já lançados, vendidos e construídos e temos sim um super orgulho disso, mesmo [sic]. A AREAURBANISMO tem uma experiência única no mercado imobiliário nacional". Podiam incluir: "fazemos qualquer negócio". É uma linguagem digna dos piores tubarões do mercado.
Ainda precisamos advogar muito pela responsabilidade individual no Brasil. Também do investidor e de quem compra. Conheço diversos cirurgiões plásticos que se negam a fazer a octagésima intervenção em um paciente com distorção estética grave. Há jornalistas — acredite — que se recusam a entrar em veículos 100% patrocinados com dinheiro público para ficar bajulando governos e atacando seus colegas.
Da mesma forma, muitos arquitetos — normalmente, os que já são bons desde a faculdade — se recusam a fazer qualquer coisa sem apreço ao planeta.
Polêmica do umbigo
A polêmica sobre o Jardim das Perdizes reforçou o que se imaginava de quem escolhe morar de costas para a cidade. Muita gritaria sobre o "belo" e a "qualidade de vida" de quem jamais leu ou se interessou sobre arquitetura e urbanismo. Que não sabe a diferença entre Sig Bergamin e Tadao Ando. Parecem desconhecer que as atuais 11 torres do "Jardim" podem ganhar, se a Tecnisa não quebrar de novo, outras 22 torres planejadas. Para quem faz tudo só de carro, o que é ruim vai virar um pesadelo.
Também vi alguns me acusando de querer fazer barulho comparando o Jardim da Barra Funda a uma mini Dubai, coisa que o próprio CEO da construtora fez. Olha, se eu quisesse chamar atenção, viraria coach, escreveria livros de autoajuda ou daria cursos sobre como emagrecer ou enriquecer. Garantia de pouco esforço intelectual e boa remuneração. Se escolhi escrever sobre urbanismo e cidades é porque não gosto de caminhos fáceis.
Só senti um alívio quando vi um morador orgulhoso do feudo reclamar que a única coisa ruim do condomínio era o pé-direito baixo dos apartamentos. Quem só pensa em si e em seu bem-estar portas para dentro, e caga para o "resto" da cidade e pro bem-estar coletivo, jamais consegue dissimular.
Ainda há muita batalha para se atenuar o analfabetismo urbano.
Bálsamo visual
Quem quiser assistir a um bálsamo, depois de tantas cenas fortes, deixo o link para um vídeo que fiz sobre o pioneiro designer e arquiteto italo-brasileiro Giancarlo Palanti. Bons tempos.
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