Baixa Câmara Alta: Mourão, babá de golpista, e Moro, o 101º senador dos EUA
Escrevi ontem um artigo sobre a falta de rumo da direita e sua absoluta incapacidade de apresentar uma miserável proposta objetiva que seja, preferindo se fixar na crispação ideológica. Ora confunde a política com delegacia de costumes, ora evoca as forças do fim do mundo que povoam sua imaginação delirante. O Senado sempre foi a Casa mais sóbria do Congresso. Como se faz uma eleição federal majoritária do estado, era o destino natural de ex-governadores — ainda há alguns por lá — ou de deputados federais experimentados. A ascensão do bolsonarismo abalou também esse pilar, e histriões de toda natureza ali ganharam um assento, alguns vencendo a sua primeira eleição. Dois marinheiros de primeira viagem — Sergio Moro (União-PR) e Hamilton Mourão (Republicanos-RS) — resolveram enlamear com a impostura a nossa, por assim dizer, "Câmara Alta", que nunca foi tão baixa — com todas as vênias às pessoas sérias que lá estão, e são muitas.
Nota: embora Mourão tenha vencido a eleição como vice de Jair Bolsonaro em 2018, é evidente que os votos não eram seus. Em 2022, obteve o próprio mandato de senador, sua primeira disputa verdadeira, ainda se aproveitando da voragem bolsonarista. Vamos lá.
MORINHO, o 101º SENADOR DOS EUA
Nesta quarta, o embaixador Mauro Vieira, titular do Itamaraty, falou à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado. Deveria ter sido aplaudido de pé. Sua atuação tem sido, até aqui, irrepreensível, especialmente nestes dias de guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas. O país apresentou uma proposta de resolução impecável no Conselho de Segurança da ONU, que mereceu um único veto: o dos Estados Unidos. Dois outros membros permanentes aprovaram: China e França. Rússia e Reino Unido se abstiveram. Os demais países aprovaram.
Já escrevi a respeito. O texto condena os atos terroristas contra Israel, atribuindo-os ao Hamas — que, então, terrorista é; cobra a libertação imediata dos reféns; esconjura a violência e evidencia que a barbárie a que se assistiu não tem motivo justo possível; não pede um cessar-fogo — isso é mentira; os EUA leriam a exortação como cerceamento do direito de Israel se defender — e fala em "pausa humanitária", justamente para que se abram corredores para atender aos feridos; exige cuidado com os civis, evocando leis internacionais que os protegem em caso de guerra. Ao vetar a resolução, a representação americana no Conselho afirmou que seu país privilegiaria o que chamou de "diplomacia de campo" — vale dizer: as combinações de Biden com Benyamin Netanyahu. A França cumprimentou o Brasil, destacando o óbvio: a formulação não obstava a as ações defensivas dos israelenses. Basta lê-lo. Pedia aquilo que obviamente não se tem: cuidado com os civis.
Pois é... Moro resolveu demonstrar a sua sapiência em política externa e contestou Vieira com estas palavras:
"Pra mim, também, aqui é um sinal, ministro, com todo respeito o fato do Brasil apresentar uma proposta de resolução da ONU -- e aqui faço os elogios para tentar buscar um caminho pela paz -- e, de repente, a nossa resolução é vetada não pela Rússia, não pela China, não por outros países que não seguem a nossa tradição democrática, mas é vetado (sic) pelos Estados Unidos, falando por ele mesmo e falando, igualmente, pelo Estado de Israel. Então, claro que é elogiável o Brasil buscar um consenso e buscar aprovar uma resolução, mas também é um indicativo de que, talvez, estejamos aqui mal orientados, quando a nossa proposta de resolução é exatamente vetada por um país que é um aliado tradicional e é um país que cultua valores democráticos muito próximos ao nosso (sic), e esse veto é um veto bem representativo dos interesses de Israel, E Israel, quer ter garantido o quê? O seu direito à autodefesa".
COLEÇÃO DE BOBAGENS
É tanta bobagem junta que mal se sabe por onde começar. Vamos ver:
1: a resolução não tirava de Israel o direito à autodefesa;
2: um documento dessa natureza, em situação de guerra, nunca contempla apenas um lado do conflito;
3: fosse como diz esse gênio da raça, ficaríamos assim: os EUA são uma democracia, e o Brasil também. Logo, ou o Brasil vota sempre com os EUA, ou, então, democrata não é, de sorte que seu modo de provar que é democrático é ser um subordinado de Washington. A Lava Jato, é verdade, foi sabuja dos interesses americanos. O valente toma a si mesmo como a régua do mundo;
4: a França é uma democracia e votou a favor; Macron, depois, parabenizou o Brasil;
5: a autoritária Rússia e o democrático Reino Unido se abstiveram -- o que não impedia a aprovação: a primeira porque considerou a proposta muito pró-Israel; a segunda porque achou que não era pró o suficiente, mas contra também não era, ou teria optado pelo veto. Fazer avaliação de regimes e de afinidades entre os países só a partir de votos na ONU é uma postural verdadeiramente asnal;
6: nas representações da ONU, cada país só fala por si mesmo;
7: Moro diz querer a paz, mas ataca uma formulação que propunha corredor humanitário, coisa a que Israel até agora se negou a fazer. Há em torno de 30 brasileiros presos na Cisjordânia, sujeitos a levar uma bomba na cabeça, porque o governo Netanyahu não lhes garante algumas horinhas para que possam deixar a zona de guerra. Mas sabem como é... Esse notável representante do povo acha que expor brasileiros à morte é menos grave do que ter um texto vetado pelo país de seus ex-patrões...;
8: fica evidente que um texto que fosse aprovado pelos EUA, contemplando apenas os interesses israelenses, seria vetado por Rússia e China, e o que se pretendia era aprovar uma resposta humanitária;
9: Moro está lá para exercitar o seu rancor e atacar Lula e o PT, como se sabe. Ainda assim, acrescente-se: ele é incapaz de fazer um raciocínio lógico. Durante uns bons anos, esse cara mandou no país;
10: 35 senadores americanos assinaram um documento cobrando imediata ajuda humanitária à Faixa de Gaza; Moro, o 101º senador da América, não é desse tipo. Ele é um falcão republicano!
Trata-se de um fala burra.
Trata-se de uma fala sórdida.
MOURÃO, A BABÁ DE GOLPISTA
E Mourão? O cara apresentou nesta quinta um projeto de lei para anistiar os condenados pelos atos de 8 de janeiro. Mas decidiu recorrer a uma tática malandra. Não de todos os crimes: só os de tentativa de ruptura do estado de direito e de tentativa de golpe de Estado -- os artigo 359-L e 359-M do Código Penal. As condenações por organização criminosa e depredação do patrimônio, que rendem penas leves, bem, essas continuariam.
Afirma o bravo:
"Para que não haja dúvidas, não estamos propondo uma anistia ampla, mas apenas para esses crimes específicos, dada a impossibilidade de identificar objetivamente a intenção de cometê-los. Remanescem, todavia, as acusações e condenações pelos crimes de dano, deterioração do patrimônio tombado e associação criminosa, pois são condutas que podem ser individualizadas a partir das imagens de vídeos que mostraram toda aquela manifestação".
Ah, entendi: deu um faniquito nos patriotas e então pensaram: "Quer saber? Vou ali quebrar umas coisinhas. Como será mesmo impossível avaliar a minha intenção, mesmo que dê tudo errado e eu seja preso, tudo bem". E as evidências de que o ataque era o meio de um fim almejado: a intervenção militar (ruptura do estado de direito) e a deposição de um governo legitimamente eleito (golpe de estado)? Ah, isso a gente deixa pra lá porque não pode ser registrado por câmeras.
Vejam que coisa fofa: é um projeto de lei. Bastaria maioria simples para, então, mandar o Supremo plantar batatas. Ainda que aprovado, o texto poderia ser vetado pela Presidência — veto que poderia ser derrubado por maioria absoluta. Mas nem a tanto chegaria porque, por óbvio, trata-se de usar uma prerrogativa do Congresso com claro desvio de finalidade. É inconstitucional. Como inconstitucional foi a graça concedida por Bolsonaro a Daniel Silveira. Os Poderes têm suas prerrogativas. Entre elas não está a de um cassar as faculdades exclusivas do outro.
Mourão, ele mesmo, prova a inconstitucionalidade da sua proposta. Diz o gigante:
"A maioria não agiu em comunhão de desígnios e estava ali somente para protestar, sem a presença do dolo específico que esses crimes exigem. As condenações que o Supremo Tribunal Federal vem aplicando aos acusados são, data vênia, desproporcionais e, por isso mesmo, injustas".
Nem toma o cuidado de fingir que está propondo a anistia para, sei lá, pacificar o país. Não! Deixa claro que seu intento é mesmo fazer do Congresso uma corte revisora do STF, sendo, então, o Supremo do Supremo. Era, a propósito, o plano de Benyamin Netanyahu em Israel, enquanto os terroristas do Hamas urdiam seu plano de homicídio em massa.
VAI NESSA, PACHECO?
E aí? Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, que resolveu ser porta-voz das causas anti-Supremo, vai abraçar mais essa? Ou a iniciativa é de tal sorte absurda que expõe ao ridículo as suas próprias investidas contra o tribunal? A propósito: Moro é um dos fomentadores da sanha contra o tribunal. Quem sabe um dia ainda consiga anular a anulação dos processos contra Lula, né?, a sua obsessão.
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OLHAR APURADO
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Quero receberVolto ao começo. Eis dois flagrantes da direita brasileira. Quando não está atentando contra os direitos humanos, mandando brasileiros às favas, ou a defender golpistas, ocupa-se de regular o que os outros fazem na cama. É uma devastação.
Pensem em tudo de importante que já se votou nestes 10 meses, apesar de tudo. Qual era mesmo a alternativa que apresentavam a direita e a extrema-direita? Histeria e gritaria. Pacheco, pelo visto, se viu atraído pela nau para granjear o apoio de insensatos em futuras disputas. Só falta agora se juntar a Mourão.
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