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Rubens Valente

Cidade usada como exemplo por Bolsonaro vive 'auge' da Covid com 35 mortos

Colunista do UOL

13/06/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Em live no dia 14 de maio, Bolsonaro elogiou a cidade de Itaituba, no Pará, pelo seu modo de enfrentamento da pandemia
  • Segundo Bolsonaro, não havia "problema de coronavírus" na cidade e "95%" do comércio estava funcionando normalmente
  • Quase um mês depois, Itaituba registra 1,2 mil casos e 35 óbitos por Covid-19 e a prefeitura vê o alastramento em garimpos e terras indígenas

Há quase um mês, em 14 de maio, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou uma de suas lives em redes sociais para exaltar o desempenho da cidade de Itaituba, no interior do Pará, no combate ao novo coronavírus. Segundo ele, não havia nenhum caso de Covid-19 no município e o prefeito permitira o funcionamento de "95%" do comércio. Esse verdadeiro milagre era tudo o que Bolsonaro mais espalhou ao longo da crise do coronavírus: enfrentar a doença sem distanciamento social.

"Como hoje conversei com o prefeito de Itaituba, em Roraima. [Um assessor corrige Bolsonaro] Itaituba no Pará. Ele falou para mim que mais de 95% das atividades comerciais do seu município está aberta. E está indo muito bem. Não tem problema de coronavírus, tá certo? E o comércio está funcionando. E ele resolveu assumir essa posição e eu o cumprimentei. Porque na ponta da linha, com todo o respeito aos governadores, quem tem que decidir são os prefeitos. Se não é o presidente, né? Tem que ser os prefeitos", declarou Bolsonaro.

Poucos dias depois da live, entretanto, Itaituba passou a viver uma explosão de casos de Covid-19, que segue preocupando as autoridades sanitárias do município, que tem 100 mil habitantes e forte presença garimpeira. O prefeito Valmir Climaco (MDB) e a Secretaria Municipal de Saúde informaram à coluna que até esta quinta-feira (11) haviam sido confirmados 1.295 casos e 35 óbitos pela Covid-19. Há menos de um mês eram apenas 25 casos e um óbito. A doença agora se espalhou pelos garimpos da região, onde trabalham cerca de 60 mil pessoas, segundo o prefeito.

A título de comparação, a vizinha Rurópolis, a 150 km de Itaituba e com 49 mil habitantes, registrava no mesmo dia 208 casos e três óbitos. Jacareacanga, a 393 km e 41 mil habitantes, apontava 106 casos e cinco óbitos.

Em sua live, Bolsonaro transmitiu pelo menos uma informação incorreta sobre Itaituba, localizada a cerca de 1,2 mil km de Belém (PA). Não era verdade que a cidade estava livre do novo coronavírus em 14 de maio. No dia anterior, 13, já haviam sido confirmados 25 casos de Covid-19, incluindo uma morte. No dia da live já eram 30 os casos confirmados.

Logo depois, no dia 19 de maio, a pandemia já havia saltado para 130 casos e seis mortes. Na mesma data o Ministério Público do Pará pediu que a Justiça decretasse "lockdown" na cidade, mas não foi atendido.

'Tentamos conciliar'

O cenário propagado por Bolsonaro de que "95%" da cidade tinha seu comércio normalizado mudou rapidamente nos dias seguintes à live, numa tentativa da prefeitura de conter a disseminação da doença. "Naquela época da live, o comércio estava totalmente aberto, nós tivemos um aumento de óbitos e aí estava prestes a decretar 'lockdown'. Achamos por bem recomendar a redução [das atividades] para tentar controlar a circulação das pessoas", explicou o secretário municipal de Saúde, Adriano Coutinho.

"Nosso prefeito tem muita preocupação com a questão econômica. Sempre a gente tentou conciliar a economia com a saúde. Mas o comércio nunca fechou [totalmente] e foi isso que o presidente falou, elogiou o prefeito, só que não teve condições mais de manter o comércio totalmente aberto. Mesmo de forma reduzida o comércio está conseguindo trabalhar", disse o secretário.

Até esta sexta-feira (12) estavam fechados academias de ginástica, bares, restaurantes e casas de show. O comércio não essencial era autorizado a funcionar até às 14h00. Os serviços essenciais poderiam funcionar até às 17h00. O cenário deve mudar a partir deste sábado (13), quando passa a valer um decreto municipal assinado na noite da sexta-feira para permitir a reabertura, com restrições, de todos os setores antes fechados.

A partir das 18h00, há um toque de recolher na cidade. Apenas profissionais de saúde, de segurança e entregadores de comida e medicamentos, entre outras atividades, podem circular na cidade. Quem não consegue comprovar a necessidade do deslocamento pode ser multado em R$ 300.

O secretário de Saúde considerou "em equilíbrio" o quadro hoje da Covid-19 no município. Embora continuem subindo os casos e óbitos, o sistema de saúde tem conseguido acolher os pacientes, segundo o secretário. Apenas casos mais graves têm sido transportados para Santarém (PA) em helicóptero fretado pelo governo do Pará - houve dez remoções desde meados de maio.

"Chegamos a ter em Itaituba 40 pacientes internados, mas nas últimas duas semanas tivemos uma queda, não temos mais internados. Na UPA, o máximo foi de 50% da capacidade. É uma doença que está apresentando um óbito, dois óbitos por dia, porém a taxa de ocupação hospitalar abaixo de 50%. Estamos numa fase de equilíbrio. Começou a complicar no finalzinho de abril e todo o mês de maio. No final de maio nós atingimos o pico de internações. Nosso sistema colapsa rápido, porque não tem tanta vaga, não temos UTI, apenas salas de estabilização e 6 respiradores", explicou o secretário.

'16 mil infectados'

Valmir Climaco, o prefeito, disse que de fato conversou com Bolsonaro por telefone no dia 14 de maio e repetiu o que teria dito ao presidente, que não fechou o comércio. "Aqui eu nunca fechei tudo. Se pegar 1.300 casos confirmados para 35 óbitos é um dos índices mais baixos. Não entendo, particularmente, que se fechar [comércio] vai diminuir. Aqui as análises que nós temos da secretaria de Saúde é que nós temos no mínimo 16 mil infectados [sem notificação]. Muita gente que não vem ao hospital. Conheci um rapaz que pegou e só sentiu uma quentura no rosto. Ele nunca parou de trabalhar."

Climaco reconhece que a situação continua pesada na saúde da cidade, mas prometia, na quinta-feira, reabrir setores antes fechados, o que veio a fazer no dia seguinte. "Está o auge da pandemia", disse o prefeito.

O prefeito disse que não votou em Bolsonaro, mas tem atitudes do presidente que ele aprova e outras que desaprova. Para Climaco, ele tem que ouvir mais opiniões contrárias ao seu comportamento. "Sou ignorante igual ao Bolsonaro, mas eu tenho uma equipe de gente, eu tenho minha mulher que não me deixa falar besteira. Principalmente falar contra as instituições. Eu respeito as instituições, não falo besteira como ele fala. Eu não sei se a mulher dele dá conselho, não sei se os ministros militares dão conselho. O presidente está toda hora nas redes sociais, dando entrevista todo dia. Presidente da República tem que respeitar as instituições, não pode estar falando besteira em redes sociais."

Climaco gostou da expulsão dos médicos cubanos porque, segundo ele, tinha "8 mil médicos desempregados no Brasil" - o Ministério da Saúde até hoje enfrenta dificuldades para preencher as vagas. Mas ele deplora a falta de diálogo de Bolsonaro com as autoridades. "É um governo muito honesto mas é um governo com estilo de ditadura militar. Essa de baixar decreto para nomear reitores de faculdade. Para se ter ideia, eu não nomeio nenhum diretor de escola. As 146 escolas, eu não nomeio, eu deixo a comunidade votar. Ele [Bolsonaro] tem que mudar porque nunca vi um presidente da República ter os 27 governadores todos contra ele. Tem alguma coisa errada. Acho que ele tem um problema de relacionamento. Ele não consegue se relacionar com a imprensa. Essa briga é muito ruim para o país."

'Bichinha' que mata

A exemplo de Bolsonaro, Climaco é defensor do uso da cloroquina na pandemia. Segundo ele, todo paciente que entra no sistema de saúde com Covid-19 recebe um "kit de remédios", que inclui cloroquina e azitromicina, logo no começo da manifestação dos sintomas, mas antes o paciente tem que assinar os papéis dizendo que concorda. De acordo com Climaco, a "bichinha mata mesmo" quem tem "problemas cardíacos e de câncer". A coluna quis saber qual "bichinha". Climaco esclareceu: "A cloroquina". Por isso todos os cuidados são tomados pelos médicos, segundo o prefeito.

Ao mesmo tempo em que reconhece que não "fechou totalmente", contudo, Climaco aponta uma grande queda da atividade econômica revelada na redução da receita do município."Nós tivemos uma perda de 60% da arrecadação própria, perda do ICMS do Estado, vamos ter que demitir ou baixar salários. A nossa arrecadação caiu de R$ 5 milhões para R$ 1,7 milhão ao mês", disse o prefeito.

A falta de dinheiro impacta também no combate à pandemia. "Estamos com problemas de oxigênio. Antes da pandemia eu gastava cinco 'balas' [recipientes] de oxigênio por dia, hoje são 60. Porque tem 25, 30 pessoas por dia no tratamento com oxigênio. Acredito, pelos dados, o que mais estou gastando dinheiro é com teste rápido, já comprei mais de 7 mil unidades. E quando a pessoa chega doente, vou logo dando cloroquina, azitromicina."

O cenário que mais preocupa Climaco no momento é a disseminação da doença na zona rural do município, o 13º mais extenso do país, com 62 mil km². Há setores inacessíveis por estradas ou rios. "A doença está chegando nos garimpos e terras indígenas. Já morreram três caciques. Estou muito preocupado com isso. Se o governo pudesse colocar um avião aqui, é o que precisamos. Toda a região está ficando infectada. Começou na cidade, isso é normal, mas agora espalhou. Temos mais de 60 mil garimpeiros na região. Temos mais de 1 mil pistas de garimpo. Graças a Deus é o garimpo que segura a nossa economia. Quando o desemprego apertou na cidade, o povo foi correndo para o garimpo. Aumentou o garimpo e aumentou a produção", disse o prefeito.

Dos garimpos em atividade, segundo o prefeito, cerca de 30% estão dentro de terras protegidas pela União, indígenas ou unidades de conservação. Assim, um efeito colateral da pandemia foi o aumento da exploração garimpeira na região. Segundo o prefeito, todo mês são extraídos 2 mil quilos de ouro no município.