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Rubens Valente

Bolsonaro deu a ministério poder de "estimular e induzir investigações"

1.jan.2019 - O presidente Jair Bolsonaro assina o termo de posse do cargo no Congresso Nacional - Sergio Lima/AFP
1.jan.2019 - O presidente Jair Bolsonaro assina o termo de posse do cargo no Congresso Nacional Imagem: Sergio Lima/AFP

Colunista do UOL

25/07/2020 14h28

Em 1º de janeiro de 2019, no seu primeiro dia de governo, o presidente Jair Bolsonaro assinou seus quatro primeiros decretos que promoveram uma ampla reestruturação do serviço público a partir da fusão de ministérios e do remanejamento de órgãos e atribuições.

No emaranhado de novidades, um dos artigos do decreto 9.662 passou despercebido na ocasião. De uma forma insólita, segundo especialistas ouvidos pela coluna, o artigo 29 atribuiu a uma unidade do MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública) a competência de "estimular e induzir a investigação de infrações penais, de maneira integrada e uniforme com as polícias federal e civis".

Meses depois, em dezembro de 2019, sob a gestão do ex-juiz federal Sergio Moro, o ministério alçou a Seopi a novo membro do Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência), que reúne mais de 40 órgãos da Esplanada.

A unidade que ganhou essas capacidades é a Seopi (Secretaria de Operações Integradas), uma das cinco secretarias vinculadas ao ministro da Justiça, André Mendonça. Foi esse setor que desencadeou, a partir de junho, por meio de sua Dint (Diretoria de Inteligência), a produção de um dossiê sobre 579 agentes da segurança pública e quatro acadêmicos considerados "formadores de opinião" do movimento dos policiais antifascistas.

A apuração da Seopi começou dias depois que Bolsonaro, num discurso em Águas Lindas (GO), chamou os manifestantes antifascistas de "marginais, terroristas". Em resposta o UOL nesta sexta-feira (24), o MJSP disse que a Seopi realiza atividade de inteligência.

Antes de Bolsonaro, a Seopi funcionava como uma coordenadoria. No governo de Michel Temer (2016-2018), ela atuou mais fortemente na articulação de investigações criminais pelas polícias civis nos Estados contra crimes de exploração sexual e pornografia infantil. Foram desencadeadas várias fases da operação chamada Luz na infância. Não há registro de investigações de cunho político. A legislação então em vigor não incluía a expressão "estimular e induzir", o que passou a existir em 1º de janeiro de 2019.

Mas o que seria isso? O decreto não explica como seria o estímulo e a indução. Os advogados criminalistas Leonardo Magalhães Avelar e Alexys Campos Lazarou, membros do Observatório do Direito Penal, disseram que a ideia central do decreto era tornar a Seopi "responsável por promover e integrar as atividades operacionais entre os órgãos de segurança pública".

"É evidente que a Seopi não tem atribuições inerentes à Polícia Judiciária e, mesmo que fosse esse o intento inicial do governo, tampouco poderia um decreto legislar em matéria penal, contrariando disposição específica do Código de Processo Penal que reserva o poder de investigação às Polícias Judiciárias", escreveram os advogados.

Para os advogados, o decreto incentiva a atuação de uma "Abin paralela", em referência à Agência Brasileira de Inteligência, vinculada ao GSI (Gabinete de Segurança Institucional) da Presidência da República.

"Há um estranhamento de partida. As competências da Seopi são muito paralelas às da Abin. Não temos como entender qual a motivação última disso, mas é racional que esta, no subsistema criado por decreto, não pode mais do que aquela, no sistema criado por lei federal. Dentro dessa lógica, se a Abin só pode se comunicar com outros órgãos se estiver em contato prévio maior da hierarquia do respectivo órgão, é muito claro que não poderia a Seopi criar diretamente uma rede de contato direto com delegados nas polícias judiciárias. É ilógico e dá um indício de atribuições que extrapolam", disseram os advogados.

"Ao que parece, o órgão se apresenta como uma espécie de Abin paralela (sem que isso, de início, tenha um vício legal de forma) que exerce atividades diferentes das que anuncia (tendo por base a notícia). Na casuística do episódio, o problema fica ainda mais evidente. Ao usar do órgão para investigar desafetos ideológicos do governo, usa-se de um sistema alheio ao controle jurisdicional e coberto por sigilo de documentos, como instrumento transverso de coação e constrangimento de personagens específicos."

'Extremamente vago e invade competências'

O presidente do conselho de administração da organização não governamental FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e sargento da PM de Santa Catarina, Elizandro Lotin de Souza, que também integra o movimento dos policiais antifascistas, disse que "nunca ouviu falar em estimular e induzir" como atribuição de qualquer órgão da área de segurança pública.

"Isso não é função do Ministério da Justiça, cabe ao Ministério Público, ao Poder Judiciário. É algo extremamente vago que na minha avaliação invade competências, desvirtua e rasga o Código Penal. Abre precedentes para qualquer tipo de situação e o resultado será o monitoramento de pessoas. Hoje é o policial, amanhã ou depois será o promotor, o juiz, qualquer um. Não podemos ter ainda práticas da ditadura militar."

Para Lotin, o Ministério da Justiça precisa vir a público explicar que tipo de ameaça estava falando ao monitorar o movimento dos antifascistas. "Em nenhum momento se cogitou em algo parecido [com terrorismo]. Aliás, quem iria explodir quartéis não éramos nós. A gente discute segurança pública, descriminalização de drogas, modernização dos órgãos de segurança. É claro que isso passa por debates políticos também. E isso não é proibido."

Em artigo neste sábado (25), o presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima, pontuou que a ação descrita pelo UOL nesta sexta-feira "ocorre no limbo de regulamentação da área de inteligência. Não há ameaças ou crime nos manifestos dos Policiais Antifascistas - podemos até discordar dos termos e das ênfases, mas jamais achar que eles não têm o direito de se manifestar".

Membro da CCAI (Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência), o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) informou, por meio de sua assessoria, que vai ajuizar uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) no STF (Supremo Tribunal Federal) a fim de "suspender ações de inteligência desenvolvidas em desfavor de opositores políticos baseados na Lei de Segurança Nacional; determinar a remessa integral dos relatórios produzidos à custódia do STF"; pedir a divulgação de todo o relatório assim que for "verificada a ausência de fundamento ao sigilo"; e pedir que o STF determine ao MJSP "que se abstenha de comunicar a órgãos de controle fatos que não constituem crime ou infração disciplinar, visando mero constrangimento ilegal". Também pediu ao STF "que ordene à PF a abertura de inquérito para apurar eventual prática de crime por parte do ministro e seus subordinados".

Posição do Ministério da Justiça

Procurado pela coluna na sexta-feira, o Ministério da Justiça divulgou a seguinte nota, na íntegra: "O Sistema Brasileiro de Inteligência (instituído pela Lei nº 9.883/1999) é responsável pelo processo de obtenção, análise e disseminação da informação necessária ao processo decisório do Poder Executivo. A atividade de Inteligência de Segurança Pública é realizada por meio do exercício permanente e sistemático de ações especializadas para identificar, avaliar e acompanhar ameaças potenciais ou reais. O objetivo é subsidiar decisões que visem ações de prevenção, neutralização e repressão de atos criminosos de qualquer natureza que atentem contra a ordem pública, a incolumidade das pessoas e o patrimônio. Como agência central do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (Decreto 3695/2000), cabe à Diretoria de Inteligência da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, como atividade de rotina, obter e analisar dados para a produção de conhecimento de inteligência em segurança pública e compartilhar informações com os demais órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência".