Defesa pagará R$ 145 milhões por satélites; especialistas questionam gasto
Resumo da notícia
- Investimento militar visa a complementar monitoramento de queimadas, diz ministério
- Tecnologia de novos radares permitiria imagens mesmo em caso de muitas nuvens
- Especialista internacional afirma que serviço poderia ser conseguido de graça ou a baixo custo
- Inpe afirma que trabalha em conjunto com ministério, mas não participou de estudos para essa aquisição
O Ministério da Defesa vai gastar R$ 145 milhões em "aquisição de microssatélites" a serem usados por um órgão vinculado à pasta no momento em que o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), especializado no tema espacial há quase 50 anos, enfrenta ameaça de cortes em seus projetos para o ano que vem.
Ataques do presidente Jair Bolsonaro e do ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) ao Inpe geraram uma crise no ano passado, quando a recusa governamental em aceitar os números do desmatamento na Amazônia culminou na destituição, decidida pelo presidente, do então diretor do órgão, Ricardo Galvão. A saída do cientista teve forte repercussão internacional.
Os investimentos de R$ 145 milhões em um órgão controlado pela pasta militar estão sendo vistos por especialistas como mais um passo nas tentativas de esvaziar o Inpe e criar um sistema paralelo, controlado por militares, de medição do desmatamento. O governo diz que vai trabalhar "em complemento" aos sistemas já usados pelo instituto.
A nota de empenho do novo investimento, datada de 30 de junho, diz que a aquisição dos satélites ocorrerá sem licitação. Indagado pela coluna duas vezes, o MD (Ministério da Defesa) não informou qual será a empresa fornecedora nem o cronograma dos desembolsos.
O gasto vitamina o Censipam (Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia), vinculado ao MD. A pasta afirmou que os recursos financeiros são provenientes dos valores recuperados pela Operação Lava Jato.
O Inpe já usa imagens de satélites brasileiros, indianos e norte-americanos que dão base a dois sistemas de monitoramento da Amazônia e de outros biomas brasileiros: o Deter, mais utilizado como apoio às operações contra crimes ambientais, e o Prodes, que produz os balanços anuais de desmatamento.
Imagens mesmo em regiões nubladas
O novo sistema, de acordo com o MD, vai utilizar satélites que captam imagens mesmo numa região com nuvens, em uma tecnologia conhecida como satélite-radar. Não foi divulgado que tipo exato do satélite será usado.
Os equipamentos usados pelo Deter não conseguem captar imagens em áreas com nuvens, diz o governo.
Especialistas ouvidos pela coluna colocaram em dúvida a necessidade do gasto, a qualidade das imagens que serão geradas e a ajuda efetiva da novidade no combate ao desmatamento da Amazônia.
O cientista Gilberto Câmara, diretor do Inpe de 2005 a 2012 e atual diretor do GEO (em português, Grupo de Observação da Terra), uma parceria intergovernamental entre mais de cem países-membros, a Comissão Europeia e 115 organismos internacionais, disse que os dados atualmente produzidos pelo instituto e fornecidos ao Ibama, ICMBio e outras instituições governamentais e não governamentais "são mais do que suficientes para o Brasil ter boas campanhas de operações de cumprimento da lei", contra o desmatamento e as queimadas ilegais.
Sistema poderia ser adquirido de graça, afirma especialista
"O Brasil já mostrou que não há necessidade de mais um sistema, conseguiu reduzir o desmatamento em mais de 80% em anos anteriores com os dados já disponíveis. O dado existente é bom, é suficiente. Se o país chegasse à conclusão de que precisa de informações que não estão disponíveis no Deter, tudo bem, vamos atrás do radar, mas não está nada provado sobre isso. O que está acontecendo é uma esquizofrenia galopante sobre o desmatamento que está levando os militares a uma opção e a uma estratégia totalmente equivocadas em relação ao assunto."
Câmara, que disse não ter sido procurado pelo governo brasileiro em nenhum momento para falar sobre o tema, explicou que as imagens produzidas por satélite-radar nem sempre são conclusivas, podendo trazer mais dúvidas do que certezas.
"O satélite-radar é um sensor ativo. Ele manda um sinal e recebe de volta. A pessoa pode concluir: 'Ah, então eu consigo pegar uma imagem mesmo que a região esteja nublada'. O problema é que a imagem-radar é muito mais difícil de ser interpretada, nem sempre traz as informações necessárias para se distinguir áreas desmatadas das não desmatadas. Depende do pulso do radar, não é qualquer pulso que consegue separar árvores de gramíneas, por exemplo."
Câmara explicou ainda que essa tecnologia já foi amplamente estudada pelos cientistas do Inpe. E que, se necessário, é possível encontrar imagens do gênero de graça ou a baixo custo, por exemplo em uma parceria com o Japão.
"São décadas do trabalho do Inpe com radar, dezenas de 'papers' e teses que estudam o assunto. O Inpe sempre avaliou e continua avaliando vários satélites-radares, novas gerações, para ver se tem alguma contribuição significativa para o monitoramento ambiental. E nós achamos que isso não é comprovado até agora. Eles podem ser úteis no Afeganistão, por exemplo, onde eu quero distinguir um tanque do deserto. Mas na Amazônia a gente já testou, a conclusão é que não há metodologias operacionais que permitam uma confiança sobre detecção de desmatamento."
"Esses R$ 145 milhões vão cair na lata do lixo da história"
Câmara comparou os novos gastos com o sistema Sivam, que foi adquirido com grande estardalhaço na década de 90 pela área militar.
"Não tenho dúvida de que esses R$ 145 milhões vão cair na mesma lata de lixo da história que caiu boa parte dos recursos do Sivam, como aviões que não conseguiram gerar imagens úteis. Não há qualquer possibilidade de que se possa construir um sistema operacional de monitoramento da Amazônia, no Censipam, a fim de substituir o Inpe. Falta ciência, tão simples quanto isso. Pode ter a melhor tecnologia do mundo, se você não souber usar, não vale para nada. E a melhor tecnologia custa muito mais caro do que esses R$ 145 milhões. [O gasto anunciado] é um exercício vão e pobre. É o preço da ignorância, que custa muito mais caro do que a educação, tentar comprar algo que não vai dar certo."
Um servidor do governo brasileiro com larga experiência no trabalho com imagens de satélites na Amazônia, e que pediu para não ter o nome publicado, confirmou as preocupações de Câmara.
"Os sistemas que já existem são suficientes. O Ibama e o ICMBio não conseguem nem otimizar o uso da informação já disponível. Qual a justificativa para se gastar R$ 145 milhões em satélites de radar? O que vai agregar de resultado e solução com essa contratação? Isso é estapafúrdio, falta de noção de onde gastar o dinheiro público. Mais informação até pode ser bom, mas as instituições têm baixa capacidade para o bom uso dessas informações. É como comprar Ferrari para andar na Transamazônica. As instituições estão ficando sucateadas, têm déficit de pessoas."
Nota do Ministério da Defesa
Procurado pela coluna, o MD disse que o novo sistema vai "complementar" o trabalho do Deter. O ministério se manifestou por meio de nota, na íntegra:
"O Ministério da Defesa (MD) informa que, desde 2016, o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), para o cumprimento de sua missão de proteção da Amazônia, desenvolve o projeto Projeto Amazônia SAR com o objetivo implantar o Sistema Integrado de Alerta de Desmatamento por Radar Orbital (SipamSAR).
O SipamSAR utiliza radares de abertura sintética (do inglês synthetic aperture radar: SAR) a bordo de satélites para realizar o monitoramento da superfície terrestre. A tecnologia SAR é capaz de enxergar o terreno mesmo que ele esteja sob nuvens. Desta forma, mesmo na época de fortes chuvas na Amazônia, que duram cerca de oito meses do ano, o radar consegue monitorar o desmatamento.
O SipamSAR nasceu para complementar o sistema DETER do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) no período de maior cobertura de nuvens, já que o DETER utiliza imagens óticas.
São utilizados recursos da operação Lava Jato, destinados justamente a aprimorar a proteção da Amazônia."
Nota do Inpe
Em janeiro de 2020, o Censipam divulgou uma notícia em seu site na internet na qual se diz que o órgão estava "planejando a contratação de uma constelação de microssatélites SAR para aperfeiçoar o monitoramento da Amazônia e também de outras regiões do país".
Indagado pela coluna sobre isso, o Inpe respondeu, na íntegra: "O Inpe e o CENSIPAM, como órgãos de Estado, têm historicamente realizado colaborações técnico-científicas visando a integração de produtos e serviços, bem como o avanço científico. Desde abril de 2020 estamos realizando reuniões para o estabelecimento de um Acordo de Cooperação Técnica entre as instituições com foco principal em três áreas: 1) observação da Terra e sensoriamento remoto, 2) meteorologia e 3) hidrometeorologia. Além disso, desde o início de agosto de 2020 uma servidora do Inpe está lotada no CENSIPAM em Brasília para a realização de trabalho conjunto para analisar bases de dados, imagens de satélites e demais informações em atendimento à operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ambiental. A atuação dessa servidora do Inpe no CENSIPAM é fundamental para que os produtos e dados do Inpe sejam melhor interpretados, bem como para a produção de relatórios e identificação de áreas prioritárias para o auxílio e planejamento das equipes e dos agentes de campo. Assim, em virtude dessa colaboração crescente entre as Instituições, questões relacionadas a aprimorar o monitoramento do desmatamento da Amazônia e o uso de satélites estão ocorrendo. Nessas reuniões, até o presente momento, não foram tratadas questões relativas à contratação de uma constelação de microssatélites."
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