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Rubens Valente

Plano de vacinação do governo exclui mais da metade dos indígenas do país

Indígena usa máscara que diz "Vidas indígenas importam" durante funeral do Chefe Messias Kokama, 53, do Parque das Tribos, falecido devido à covid-19 em Manaus - BRUNO KELLY/REUTERS
Indígena usa máscara que diz "Vidas indígenas importam" durante funeral do Chefe Messias Kokama, 53, do Parque das Tribos, falecido devido à covid-19 em Manaus Imagem: BRUNO KELLY/REUTERS

Colunista do UOL

14/12/2020 04h01

Resumo da notícia

  • Tabela da vacinação prioritária contra o coronavírus entregue ao STF cita 410 mil indígenas no país, enquanto o censo de 2010 já apontou 896 mil
  • Plano produzido pelo Ministério da Saúde diz que atenderá na fase prioritária apenas índios que vivem em terras indígenas, não os que moram em cidades
  • Relatório da Articulação dos Povos Indígenas diz que governo Bolsonaro promove "apagamento da identidade indígena" durante a pandemia da Covid-19

O plano de vacinação contra o coronavírus entregue neste sábado (13) pelo Ministério da Saúde ao STF (Supremo Tribunal Federal) excluiu mais da metade da população indígena no país ao estabelecer os grupos prioritários para receber a imunização.

Na tabela que consta do plano, o governo informou o total de 410.348 indígenas. Contudo, o último censo realizado pelo IBGE, há 10 anos, já havia apontado 896.917 indígenas. O movimento indígena considera que hoje a população indígena no país ultrapassa, e muito, 1 milhão de habitantes.

A diferença de números é o resultado do recorte feito pelo Ministério da Saúde na hora de afirmar ao STF que atende a população indígena no plano de vacinação. Em uma nota de rodapé explicativa da tabela, o ministério afirma que o número de 410 mil se refere a "indígenas com 18 anos ou mais atendidos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Siasi/Sesai)" em 27 de novembro de 2020. Ou seja, o governo exclui os indígenas que vivem nas cidades, pois a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), vinculada ao Ministério da Saúde, tem adotado a prática de considerar os indígenas que se encontram em terras indígenas.

A estratégia de restringir os indígenas ao que o governo tem chamado de "aldeados" - uma expressão usada pelas estruturas de governo durante a ditadura militar (1964-1985) - é a mesma utilizada pelo governo para considerar um número menor de indígenas infectados e mortos durante a pandemia do novo coronavírus. Como a Sesai usa os números mais restritos, há uma grande diferença entre seu balanço e o paralelo realizado pelo movimento indígena.

Enquanto o governo diz que ocorreram até agora 499 óbitos e 35 mil casos de Covid-19, a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) já somou 892 óbitos e 41,6 mil casos da doença. Ela se vale de informações diretamente repassadas pelas famílias das vítimas e organizações não governamentais.

Médica sanitarista vê "discriminação e segregação dentro de um mesmo grupo social"

Trecho do plano de vacinação do governo federal que menciona apenas 410 mil indígenas no país - Reprodução - Reprodução
Trecho do plano de vacinação do governo federal que menciona apenas 410 mil indígenas no país
Imagem: Reprodução

A especialista em saúde indígena Ana Lúcia Pontes, médica sanitarista, pesquisadora da Fiocruz e coordenadora do Grupo de Trabalho Saúde dos Povos Indígenas da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), criticou a decisão do governo de prometer a vacina apenas para uma parcela dos indígenas.

"Toda a discussão que temos tido no enfrentamento da pandemia é que esse tipo de discriminação não é algo correto e desejável. A vacinação prioritária deveria ser para todos os indígenas. Não deveria ter a ver com sua situação domiciliar. A prerrogativa da Sesai é pensar e executar essa atenção diferenciada. A vulnerabilidade indígena é encontrada em diferentes contextos, nas aldeias e também nas periferias das cidades", disse a médica.

Ana Lúcia mencionou um estudo coordenado pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da UFPEL (Universidade Federal de Pelotas). Divulgado em julho, ele revelou que a prevalência do coronavírus entre a população indígena urbana (5,4%) é expressivamente maior do que a encontrada na população branca (1,1%).

    Para a especialista, vacinar um grupo indígena e não outro "significa que se está deixando um grupo vulnerável suscetível à doença". "A pandemia mostrou que a população indígena em áreas urbanas está tendo a prevalência da Covid muito maior."

    Para a especialista, o plano apresentado no sábado "é muito genérico". "Não se consegue visualizar a operacionalização e as vezes nem as fontes das informações. No caso dos indígenas, não temos os dados abertos à consulta. Nós tentamos averiguar esses dados mas a planilha que o governo forneceu tem tanto erro que não dá para considerar confiável."

    Ana Lúcia disse ainda que a opção de vacinar apenas os indígenas acima de 18 anos de idade corresponde ao que vem sendo adotado em outros países, em outros grupos humanos, nesse momento do combate ao coronavírus.

    Em relatório, APIB denunciou 'processo de apagamento da identidade indígena'

    A diferença dos números das vítimas indígenas da pandemia tem sido denunciada desde o começo pelo movimento indígena. Em relatório divulgado na semana passada e intitulado "Nossa luta é pela vida", a APIB apontou que "a diferença entre a identificação local dos casos [de covid-19] e as informações oficiais disponibilizadas pela Sesai foi suficiente para o movimento indígena reconhecer mais um processo de apagamento e invisibilização da identidade indígena".

    "Tal processo de apagamento ocorre de diversas maneiras, seja pela recusa da Sesai de atender ou de reconhecer indígenas residentes em áreas urbanas ou em territórios ainda não homologados, seja na ausência do preenchimento da informação de raça/cor e povo nos sistemas de informações do SUS (Sivep-Gripe e e-SUS Notifica), ou ainda pelo registro dos indígenas como 'pardos'. Ressaltamos que não reconhecer a identidade indígena (e povo) de uma pessoa faz com que os dados oficiais não possibilitem análises sensíveis sobre o impacto da doença no contexto específico dos indígenas, tanto aqueles aldeados quanto os residentes em áreas urbanas, já que invisibiliza a própria existência das pessoas indígenas", afirmou o relatório.

    A APIB apontou que mesmo os censos do IBGE, que antes do governo Bolsonaro vinham sendo realizados a cada dez anos, têm problemas na correta contagem da população indígena. Entre 2002 e 2003, por exemplo, a etnia sateré mawé, na região oeste do estado do Amazonas, fez um "censo participativo", por conta própria, e identificou 512 membros da etnia. O censo demográfico do IBGE do ano 2000, entretanto, apontara apenas 100 indígenas de diversas etnias na mesma região.

    No relatório "Nossa luta é pela vida", a APIB também fez uma "análise das bases de dados oficiais sobre a doença, seus processos de vigilância, notificação e divulgação das informações". As conclusões foram "a falta de transparência, a questão do racismo institucional, as evidências de subnotificação e a falta de integração dos sistemas".

    A APIB mencionou que o Ministério Público Federal no Amazonas já emitiu uma recomendação ao Ministério da Saúde "para que inclua, em seus sistemas de informação, a obrigatoriedade do preenchimento do campo raça/cor e a inclusão obrigatória do campo 'etnia'".

    "Os dados da Sesai, disponíveis apenas através dos boletins epidemiológicos, apresentam números totais de casos por DSEI, sem a disponibilização da base de dados, com informações desagregadas sobre os povos atingidos de forma acessível em seu site, como prevê a Lei de Acesso à Informação n.º 12.527/11. O acesso à informação é um direito humano fundamental, garantido pela Constituição de 1988. Quando o Estado brasileiro deixa de disponibilizar ou mesmo de coletar, na ponta, dados sobre os casos de Covid-19 de forma detalhada por raça/cor e povos, está descumprindo a lei e privando a população indígena de conhecer a sua situação de saúde, bem como de ter ferramentas para se autoproteger e exercer o controle social, prerrogativa do SUS pela Lei 8.142/90", apontou a APIB.

    A organização indígena também levou o tema ao STF (Supremo Tribunal Federal) no bojo da ADPF 709 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), relatada pelo ministro Luís Barroso. Em 5 de agosto, o plenário do STF decidiu por unanimidade manter a decisão liminar de Barroso que obrigava o governo a tomar diversas medidas a fim de conter o avanço do coronavírus na população indígena. Um dos pleitos acolhidos pelo ministro foi o acesso, pela APIB, aos "dados epidemiológicos individualizados".

    Em 21 de agosto, o ministério entregou arquivos gravados num pen drive, que foram então analisados por uma equipe de consultores da APIB. "Considerou-se que a entrega dos arquivos não atende a recomendação de disponibilização para 'acesso público dos dados' e, ademais, estão ausentes informações importantes para compreensão da base, como os 'dicionários de variáveis'. Estes são documentos de procedimento padrão para os sistemas de informação sobre saúde, que explicam as variáveis e critérios usados na formulação das bases de dados, fundamentais para a interpretação de seus resultados", apontou o relatório da APIB.

    O Ministério da Saúde e a Sesai foram procurados pela coluna neste domingo para comentar o número de indígenas que consta do plano de vacinação, mas os órgãos não se manifestaram até o fechamento deste texto. Assim que houver uma resposta, este texto será atualizado.