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Multa ambiental fora do padrão infla em R$ 1,2 bi balanço do governo no STF
Resumo da notícia
- Dados foram usados pelo governo em sua defesa no STF na ação que cobra a retomada de um Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia
- Caso a multa aplicada numa fazenda em RO seguisse o padrão do Ibama, o valor total de 2019 no país cairia para a metade das multas do ano anterior
Um cálculo de multa fora dos padrões do Ibama permitiu ao governo Jair Bolsonaro informar ao STF (Supremo Tribunal Federal) valores inflados em mais de R$ 1,27 bilhão no total das autuações por infrações ambientais aplicadas no primeiro ano do seu mandato, em 2019. A diferença causada pelo valor turbinado representa mais de um terço do valor real das multas aplicadas no período.
Caso seja eliminada a diferença de valores, as multas cairiam de R$ 3,4 bilhões para R$ 2,2 bilhões, o que representa exatamente a metade das multas registradas no último ano do governo Temer (R$ 4,4 bilhões). Mas o governo alegou ao STF que as multas aumentaram "substancialmente" em 2019.
Tudo gira em torno de uma operação realizada em 25 de outubro de 2019 na fazenda Vale Verde I, em Vista Alegre do Abunã, um distrito de Porto Velho, capital de Rondônia. De acordo com levantamento realizado pela coluna, em vez de aplicar a multa de R$ 500 por saca de soja de 60 kg produzida na fazenda - que é o cálculo usado em outras operações de fiscalização do Ibama, segundo auditores consultados pelo UOL -, o órgão multiplicou o valor por quilo de soja produzida. A multa, corrigida, seria de R$ 21 milhões, e não R$ 1,27 bilhão.
A base de cálculo gerou bizarrices em cadeia. Identificada pelo Ibama como a pessoa que supostamente utilizou as terras embargadas da fazenda de sua empresa, IB3, para produzir e vender soja, o empresário Guilherme Galvane Batista, morador de Vilhena (RO), acabou multado em R$ 720 milhões.
A legislação prevê um teto máximo de R$ 50 milhões por multa. No caso de Batista, suas autuações foram fracionadas em 20 vezes, com um auto de infração para cada nota fiscal de venda da mercadoria. As multas contra o empresário variaram de R$ 47 milhões a R$ 23 milhões cada uma.
Para se ter ideia do tamanho da autuação, no mesmo ano de 2019 o Ibama multou a mineradora Vale, responsável pelo rompimento da barragem de Brumadinho (MG), que matou 270 pessoas, em um total de R$ 250 milhões divididas em cinco tipos de infrações ambientais. O mesmo valor de R$ 250 milhões foi aplicado na tragédia de Mariana (MG).
Ou seja, o agricultor Batista foi multado num valor maior do que duas das principais tragédias ambientais e humanas dos últimos tempos no Brasil somadas.
O mesmo cálculo fora dos padrões se reproduziu nas multas aplicadas contra as duas grandes compradoras de soja que teriam adquirido a soja de Galvane Batista em outubro de 2019 da mesma área supostamente embargada. A Amaggi Exportação e Importação foi multada onze vezes sobre o mesmo assunto, num total de R$ 401 milhões, também mais do que a multa aplicada no rompimento de Brumadinho, por exemplo.
A Bunge Alimentos foi alvo de quatro multas, no valor total de R$ 155 milhões.
Tanto a Amaggi quanto a Bunge contestam o valor das multas, afirmam que a fazenda da qual adquiriram os grãos não estava embargada e dizem estar recorrendo das autuações
"A Amaggi não concorda com as autuações, muito menos com o valor das multas aplicadas, que extrapola o limite legal de R$ 50 milhões, ao passo que a fiscal aplicou diversos autos de infração contra o mesmo fato. Ademais, a multa aplicada foi de R$ 500/kg de soja, quando, na verdade, o produto é comercializado da seguinte forma pelas unidades: em saca de 60 kg ou em tonelada", disse a empresa (veja as respostas completas abaixo).
A legislação diz que o valor máximo de uma multa é de R$ 50 milhões. No caso de comércio de grãos provenientes de terra embargada, a multa terá por base o valor de R$ 500 "por quilograma ou unidade", segundo o decreto 6514/2008. No caso de soja, a fiscalização do Ibama vinha aplicando o entendimento, observado o princípio da proporcionalidade da punição, que a unidade citada no decreto deve ser considerada a saca da soja, e não o quilo.
"O quilo da soja deve estar em torno de R$ 2 ou R$ 3. A multa de R$ 500 por quilo seria extremamente desproporcional à infração. No mercado, a soja não é vendida por quilo, mas por saca de 60 quilos", disse um experiente servidor do Ibama.
Um relatório do órgão mostra que a Amaggi pagou R$ 836 mil por 1,6 mil toneladas de soja proveniente da fazenda Vale Verde I de maio a julho de 2019. Pela compra nesse valor, ela foi autuada pelo Ibama em R$ 401 milhões.
O empresário Guilherme Galvane Batista, autuado em R$ 720 milhões, vendeu por R$ 1,22 milhão as 2 mil toneladas de soja produzida na propriedade de sua empresa, de acordo com o relatório.
Procurado desde a última segunda-feira (8), o Ibama em Brasília não havia comentado o assunto até o fechamento deste texto. Também procurado na quarta-feira (10), o MMA (Ministério do Meio Ambiente) não enviou qualquer resposta.
Valor informado pelo governo ao STF 'não é verdade', diz especialista
"O valor de R$ 1,2 bilhão da soma dos autos da operação de fiscalização da comercialização da soja em Rondônia foge claramente dos padrões. De toda forma, as multas lavradas depois de outubro de 2019 nem estão sendo cobradas, o governo está sendo processado no STF por paralisar o processo sancionador (ADPF nº 755)", disse Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do OC (Observatório do Clima), coalizão de organizações não governamentais, e ex-presidente do Ibama, que analisou os números encaminhados pelo UOL.
A discussão sobre a inflação de R$ 1,27 bilhão no balanço oficial também é relevante por uma razão jurídica. O governo Bolsonaro é alvo de questionamentos no STF por uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), de número 760, ajuizada pelo OC, por diversas organizações não governamentais e por partidos de oposição.
A ação, sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia, cobra a retomada de um Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia. Em resposta às críticas, o governo Bolsonaro encaminhou à Corte, em dezembro de 2020, um relatório de 51 páginas no qual diz que a fiscalização ambiental não parou no país. Segundo o governo, ocorreu o contrário, houve um crescimento no valor das multas ambientais.
No relatório enviado em dezembro último ao STF pela AGU (Advocacia Geral da União), o MMA (Ministério do Meio Ambiente) afirma que "há inequívoca continuidade na força de atuação do Ibama na região da Amazônia Legal" e que, ao longo do primeiro ano do mandato de Bolsonaro, as autuações do órgão por crimes ambientais somaram R$ 3,4 bilhões, "valor esse substancialmente superior a todos os anos anteriores".
"No âmbito da ADPF 760, a AGU afirma, citando o MMA, que, em 2019, o valor total aplicado em multas pelo Ibama (R$ 3,4 bilhões) foi 'substancialmente superior a todos os anos anteriores', o que não é verdade. No ano de 2018 foram R$ 4,4 bilhões, segundo relatório publicado pela atual gestão do Ibama. Além disso, o número de 2019 incorpora os valores inflados da operação da soja em Rondônia", disse Suely Araújo.
Relatório mostra que multas estão sendo avaliadas no Ibama
Um relatório do Ibama mostra que dúvidas sobre as multas aplicadas na fazenda Vale Verde I estão sendo averiguadas pelo órgão dentro de um processo administrativo cujo interessado é uma das empresas autuadas, a Amaggi.
O núcleo de fiscalização do Ibama em Rondônia foi indagado pelo órgão em Brasília se dois termos de embargo citados no ato das autuações em 2019 "continuam fora da lista oficial de áreas embargadas". A resposta foi que a dúvida "deverá ser encaminhada ao setor responsável pelo geoprocessamento e cadastro de áreas embargadas, pois não tenho acesso e gestão aos sistemas em questão, não sendo possível, portanto, fornecer tal informação".
A diligência do Ibama também indagou "a possibilidade de mensurar a quantidade de grãos de soja oriunda apenas da área embargada pelo termo de embargo nº 817072-E (27,47 hectares)". As autuações de 2019 citaram três termos de embargo.
A fiscalização respondeu: "Sobre isso, entendo não ser possível realizar este tipo de cálculo sem embasamento técnico e tendo ainda o agravante de que foram lavrados dezenas de autos de infração pela compra de soja da mesma área, portanto, calcular proporcionalmente pela área a meu ver não representa uma informação fidedigna do montante de soja comercializado".
O relatório diz ainda que surgiu uma dúvida sobre se o embargo nas terras ainda estava vigente na época da operação, em outubro de 2019, mas a decisão foi tomada após consulta à "sala de situação do Estado de Rondônia" e à Procuradoria do Ibama. "[...] Após análise processual, ambas confirmaram que os embargos se mantinham, pois outra decisão judicial no âmbito dos processos decidiram [decidiu] pela manutenção dos referidos embargos. Desta forma, os autos de infração foram lavrados."
Um outro relatório do Ibama diz que a operação realizada em 25 de outubro de 2019 foi decidida depois que "incursões aérea e terrestre" na fazenda constataram que "a propriedade vem sendo utilizada há anos para o cultivo de soja e criação de gado, descumprindo a sanção de embargo imposta pelo Ibama". Segundo o relatório, os hectares embargados na fazenda somavam 2,6 mil hectares.
O relatório diz ainda que, antes das autuações, o gerente da fazenda manteve contato com um engenheiro florestal que trouxe um Termo de Compromisso celebrado entre o Estado de Rondônia e a empresa autuada, uma certidão ambiental expedida pela Sedam (Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental) e uma "cópia do requerimento de desembargo realizado na Unidade Técnica de Vilhena/IBAMA/RO em 14/10/2019".
Segundo o relatório, porém, "o desembargo não havia ocorrido no âmbito do processo administrativo dos embargos, portanto, o descumprimento dos embargos estavam em andamento".
"Vale ressaltar alguns fatos, a empresa só protocolou no Ibama a solicitação de desembargo com base no Termo de Compromisso supracitado em outubro de 2019, desta forma, toda a produção mencionada ocorreu anteriormente. Portanto, todos os produtos de origem animal e vegetal foram produzidos sobre área objeto de embargo, infringindo o art. 54 do decreto 6.514/08", diz o relatório da fiscalização do Ibama.
Empresas dizem que as multas deverão ser canceladas
Procurado pela coluna ao longo da semana, o empresário Guilherme Galvane Batista não deu retorno a vários recados deixado pela coluna no posto de gasolina em Vilhena (RO) registrado em seu nome. As pessoas que atenderam aos recados disseram que ele estava viajando.
A empresa Amaggi disse que discorda dos valores cobrados e da origem da multa.
"Os autos de infração surpreenderam a companhia - não somente pelo fato de a Amaggi jamais
adquirir grãos provenientes de áreas embargadas (pois tais áreas são automaticamente
bloqueadas da base de fornecedores da empresa), mas pelo valor desarrazoado da multa
aplicada e, principalmente, pelo fato de que nenhuma das comercializações da companhia está
em desacordo com a Lista Oficial de Embargos do Ibama - o que torna os autos de infração
nulos, por força da própria legislação. [...]
"A empresa apresentou manifestação preliminar ao Ibama nos processos administrativos a fim
de ver anulados os autos de infração ainda em fase preliminar, apontando a existência de vícios
insanáveis.
"Em sua manifestação preliminar, a Amaggi comprova a regularidade do seu processo de
aquisição, respeitando os requisitos legais, inclusive quanto à verificação da Lista Oficial de
Embargos do Ibama. A Amaggi está confiante de que a autoridade ambiental reconhecerá,
ainda em fase de análise preliminar, na esfera administrativa, a nulidade dos autos de infração
em decorrência dos vícios insanáveis apontados.
"Por sua vez, vale registrar que a proprietária do imóvel já demonstrou judicialmente a
regularidade ambiental da Fazenda Vale Verde, e obteve na Justiça Federal decisão
suspendendo auto de infração que, na mesma operação, lhe foi aplicado pelo Ibama."
A Bunge Alimentos afirmou, também em nota, que a fazenda da qual adquiriu os grãos não estava embargada.
"A Bunge fez uma apuração interna das compras de soja feitas com a Fazenda Vale Verde I e confirmou que esse fornecedor nunca foi incluído na lista de embargos do Ibama. Por esse motivo, a companhia espera solucionar esta situação e cancelar as multas.
"A Bunge reforça seu compromisso com uma cadeia de suprimentos livre de desmatamento, inclusive com práticas socioambientais e adoção de todas as medidas preventivas disponíveis para o cumprimento da legislação.
"A Bunge utilizará todos os procedimentos administrativos e/ou judiciais necessários, no momento oportuno."
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