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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Garimpo ilegal aumentou 30% na terra Yanomami só em 2020, aponta relatório

Acampamento garimpeiro no rio Uraricoera, região Waikás, na Terra Indígena Yanomami, em dezembro de 2020 - Divulgação
Acampamento garimpeiro no rio Uraricoera, região Waikás, na Terra Indígena Yanomami, em dezembro de 2020 Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

25/03/2021 01h01

Resumo da notícia

  • Levantamento analisou imagens de satélite, denúncias e sobrevoos e foi produzido por associações indígenas para ser entregue ao governo federal
  • Dário Kopenawa, liderança Yanomami, diz que governo "enganou" os indígenas e que o garimpo no território "está muito pesado" e "não tem controle"

O garimpo ilegal avançou 30% sobre a Terra Indígena Yanomami apenas no ano passado, destruindo o equivalente a 500 campos de futebol. É uma das conclusões do relatório "Cicatrizes na floresta", lançado nesta quinta-feira (25) pelas organizações indígenas HAY (Hutukara Associação Yanomami) e Seduume (Associação Wanasseduume Ye'kwana) com assessoria técnica do ISA (Instituto Socioambiental) e que será entregue a diversos órgãos do governo federal.

Fotografias feitas em dezembro de 2020 mostram balsas de garimpo, crateras e duas pistas de pouso clandestinas abertas dentro da terra indígena. De acordo com o levantamento, atualmente há 35 pistas de pouso clandestinas usadas pelo garimpo no território - todas identificadas em coordenadas geográficas.

O relatório explica que a pandemia não foi obstáculo para que os garimpeiros desmatassem, de janeiro a dezembro de 2020, os 500 hectares, em um acumulado de 2,4 mil hectares no território indígena. O número foi calculado a partir de análise de imagens de satélite, denúncias e relatos das comunidades e fotografias feitas em sobrevoos. Três novos focos garimpeiros surgiram, aumentando para seis as áreas mais atingidas. O garimpo no rio Uraricoera concentrou mais da metade (52%) do desmatamento em 2020.

De acordo com o relatório, o garimpo dentro da terra indígena já pode ser considerado "de médio porte", com "a generalizada utilização de maquinários caros e pesados e o funcionamento de uma extensa e complexa rede logística multimodal (terrestre, fluvial e aérea), que viabiliza a extração ilegal de ouro na Terra Indígena em escala intensa". A atividade clandestina agora envolve "uma organização empresarial, de alto investimento financeiro e complexa organização logística, e alcançando elevado potencial de impacto sobre o meio ambiente e vidas humanas".

Impacto do garimpo no rio Parima, na Terra Indígena Yanomami, dezembro de 2020 - Divulgação - Divulgação
Impacto do garimpo no rio Parima, na Terra Indígena Yanomami, dezembro de 2020
Imagem: Divulgação

'Os nossos rios estão contaminados', denuncia liderança Yanomami

Dário Vitório Kopenawa Yanomami, filho do líder indígena Davi Kopenawa e coordenador da associação Hutukara, disse por telefone ao UOL que o relatório confirma que "os garimpos estão cada vez mais aumentando, crescendo, cada vez impactando mais".

"Hoje tem mais de 20 mil garimpeiros que estão dentro da terra Yanomami. Uns 500 hectares foram derrubados, destruídos por maquinários, enfim isso é uma coisa muito ruim para a gente. Os nossos rios estão todos contaminados, um prejuízo muito grande. Os nossos parentes estão tomando água suja, os peixes estão morrendo, os parentes estão morrendo de gripe, de malária e de Covid que está espalhando. O garimpo está muito pesado, hoje muita gente, muitos aviões e helicópteros, barcos, voadeiras, subindo e descendo o rio. Hoje não tem controle. O governo não está controlando, a Polícia Federal, o Exército não estão fiscalizando o nosso território. Isso [relatório] se reflete para chamar a atenção das autoridades", disse Dário.

Pista de pouso do Kayanau e o garimpo na sua vizinhança, na Terra Indígena Yanomami, em dezembro de 2020 - Divulgação - Divulgação
Pista de pouso do Kayanau e o garimpo na sua vizinhança, na Terra Indígena Yanomami, em dezembro de 2020
Imagem: Divulgação

Dário disse que no ano passado chegou a se reunir com o vice-presidente Hamilton Mourão, coordenador do CNAL (Conselho Nacional da Amazônia Legal), em Brasília, mas o resultado foi uma frustração para os indígenas. Em declarações à imprensa no ano passado, Mourão disse que seriam 3,5 mil, e não 20 mil invasores na terra Yanomami, mas que seria "complexo" retirar os garimpeiros.

"No ano passado Mourão falou comigo em Brasília, conversei com ele, entreguei todas as documentações, fotos, coordenadas. A gente falou 'mais de 20 mil garimpeiros' para o general Mourão. Na matemática do governo federal, na memória do vice-presidente, ele falou '3.500 garimpeiros'. Ele falou que nós estamos mentindo. Depois demos o recado: 'Olha Mourão, você está dizendo que são 3.500, então retira os garimpeiros, é simples'. Então é fácil para tirar, para o governo federal é fácil tirar. E depois nenhum resultado para a gente. Isso não é correto. Essa contagem [3.500] não é verdadeira, é só para enganar o povo brasileiro.
Sumiu a promessa dele, ele mentiu, enganou o povo Yanomami e eu, pessoalmente, me enganou bastante. Mas estamos cobrando ainda. A promessa dele, ele tem que cumprir o que prometeu."

Antropólogo vê "uma panela de pressão" no território

O antropólogo Rogério Duarte do Pateo, doutor em antropologia social pela USP (Universidade de São Paulo) e professor na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), disse que a atual ação garimpeira "explicita uma estratégia deliberada, ou uma política deliberada, de permitir a invasão da terra indígena Yanomami".

"Realmente não acredito em simplesmente incompetência da fiscalização ou coisas desse tipo. Não é uma questão de simples omissão."

O antropólogo apontou "três eixos" da política: um legislativo, com a tramitação e aprovação de projetos de lei, emendas constitucionais e outras medidas no Legislativo com o objetivo, por exemplo, de liberar a mineração dentro de terras indígenas; um segundo seria administrativo, "que é passar a boiada do ministro Salles", envolve "tudo que não depende de lei, que são as portarias, os procedimentos administrativo articulados para dificultar a fiscalização ambiental, e não só no caso yanomami".

Pateo faz referência à reunião ministerial de abril de 2020 no Palácio do Planalto, na qual o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) disse ao presidente Jair Bolsonaro que o governo deveria aproveitar que a imprensa estava ocupada na cobertura da pandemia para "ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas".

"O terceiro nível é uma lógica que parece ser a do Brasil Colônia [séculos XVI a XIX], que é liberar uma vanguarda caótica de invasores para, a partir de um suposto fato consumado, o Estado chegar para 'legalizar' a situação. O grave disso é que a Terra Indígena Yanomami não é uma área de exploração, ela é homologada pela Presidência, registrada como propriedade da União, que sobre ela tem direitos e deveres."

O antropólogo comparou a atual invasão garimpeira ao grande ataque ataque do final dos anos 80 e início dos 90, quando centenas de yanomâmis morreram em decorrência de doenças trazidas pelo garimpo.

"Estamos vendo a coisa se constituindo como uma panela de pressão. [...] Esse garimpo não é mais de aluvião, de atores individuais, já está em nível de mineração de médio porte, os garimpos estão se conectando, tudo é uma estrutura muito grande, muito cara."

O relatório também aponta que o aumento da atividade garimpeira é "resultado da interrupção de políticas de proteção territorial".

"Destaque-se dessas medidas a desativação da infraestrutura oficial de bloqueio a invasões (isto é, as Bases de Proteção Etnoambientais - BAPEs) na TIY e a diminuição da frequência de ações de campo por parte dos órgãos de comando e controle. As BAPEs funcionavam, ao mesmo tempo, como postos de fiscalização permanente e pontos de apoio logístico para operações de TIY. A partir de 2015, com sua desativação por alegadas razões orçamentárias, os custos logísticos para a operação garimpeira reduziram significativamente, estimulando a ampliação da invasão."

Os Yanomami em fila no encontro de lideranças Yanomami e Ye'kuana, onde os indígenas se manifestaram contra o garimpo em suas terras, em novembro de 2019 - Divulgação - Divulgação
Os Yanomami em fila no encontro de lideranças Yanomami e Ye'kuana, onde os indígenas se manifestaram contra o garimpo em suas terras, em novembro de 2019
Imagem: Divulgação

O relatório termina com uma série de recomendações às autoridades federais, entre as quais:

"Apresentação de um plano integrado de desintrusão total do garimpo na Terra Indígena Yanomami;

Retomada de operações periódicas na terra indígena para destruição da infraestrutura clandestina instalada;

Avançar em investigações para identificar e responsabilizar os principais atores da cadeia do ouro ilegal que a financiam e dela se beneficiam direta ou indiretamente."

As assessorias do vice-presidente da República e coordenador do CNAL (Conselho Nacional da Amazônia Legal), Hamilton Mourão, e da Funai (Fundação Nacional do Índio) foram procuradas na noite desta quarta-feira (24) para comentar o relatório. Caso se manifestem, este texto será atualizado.

O relatório também cita operações realizadas por órgãos do governo ao longo de 2020, como a Verde Brasil 2, que "desativou temporariamente o garimpo do Mutum", a Lábaro, de março, e a Yanomami, de agosto, pela Polícia Rodoviária Federal. As duas últimas apreenderam ao todo 26,5 mil litros de combustível que seriam usados nos garimpos. O estudo ressalta, porém, que "isoladamente os resultados dessas operações estão aquém do exigido para que possam ter um efeito concreto de impedir o fluxo que abastece os empreendimentos garimpeiros clandestinos e desincentivar sua retomada".

Nesta quarta-feira (24), a Polícia Federal em Roraima divulgou que uma operação foi desencadeada sobre quatro focos de garimpo dentro da terra indígena, mas não houve prisão de garimpeiros porque eles correram e se esconderam na floresta, segundo a polícia. Num dos locais, de acordo com a polícia, havia 2 mil invasores.