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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Fazendeiro pagou defesa de PMs investigados por chacina e emissora de TV

Parente segura celular com foto do desaparecido Paulo Gustavo de Lima Lopes, em Sinop (MT) - José Medeiros/UOL
Parente segura celular com foto do desaparecido Paulo Gustavo de Lima Lopes, em Sinop (MT) Imagem: José Medeiros/UOL

Colunista do UOL

25/06/2021 04h01

Resumo da notícia

  • Sargento e dois soldados da PM foram denunciados pelo MP por homicídio e ocultação de corpos de seis homens, até agora desaparecidos, em Mato Grosso
  • Advogado confirma contratação para defesa técnica dos PMs, mas afirma desconhecer ameaça ao fazendeiro; ele depois devolveu o dinheiro e deixou o caso
  • De acordo a investigação da Polícia Civil, os PMs mataram os seis homens depois que foram chamados por Pelissa para evitar um roubo na sua propriedade
  • Os policiais militares confirmaram, em inquérito da PM, ter estado na fazenda no dia dos desaparecimentos, mas negaram qualquer tiroteio ou chacina

Agenor Vicente Pelissa, 51, o dono da fazenda Promissão em União do Sul (MT), na qual seis homens desapareceram em 18 de abril de 2020, disse à Polícia Civil em Cuiabá (MT) que sentiu "um tom ameaçador" na conversa com um dos policiais militares que estavam sob investigação da polícia e chegou a pagar R$ 300 mil a um advogado de Sinop (MT) para que ele fizesse a defesa dos PMs.

Segundo o fazendeiro, a primeira parcela —de um valor combinado total de R$ 1 milhão— foi paga com sacas de milho. Logo depois, contudo, o advogado deixou o caso e resolveu devolver ao fazendeiro R$ 350 mil por meio de transferências bancárias.

Além disso, Pelissa afirmou ter repassado mais R$ 70 mil, em espécie, para seu outro advogado particular entregar esse valor aos policiais. Ele disse que não sabe se o dinheiro foi entregue. Afirmou ainda ter aceitado pagar R$ 100 mil em informes publicitários para a Real TV, de Sinop, uma afiliada da Rede Record, após ter sido procurado pela emissora, em 2020, para falar sobre o caso na fazenda Promissão.

Os seis homens desapareceram depois que Pelissa —um produtor de soja no chamado Nortão de Mato Grosso— acionou o comandante do Núcleo da PM de Santa Carmen (MT), o sargento Evandro dos Santos, para dizer que recebera a informação de que haveria um roubo de soja na sua fazenda. No dia seguinte ao desaparecimento, a polícia encontrou na propriedade vários indícios de uma chacina, como roupas e celular ensanguentados e ao menos 18 cápsulas de armas de fogo.

Os familiares dos seis homens começaram a procurar a polícia para denunciar os desaparecimentos. Os corpos nunca foram encontrados. Dois dos desaparecidos não tinham ligações com os outros quatro. Para a polícia e o MP, os seis homens foram chacinados por um grupo de três policiais militares. Pelissa foi denunciado por fraude processual, mas escapou da acusação de homicídio e ocultação de cadáver depois que prestou um depoimento mais detalhado, em setembro.

PM não queria "seu nome vinculado ao caso", disse sojicultor

Desde o início, tanto os PMs quanto Pelissa entraram no alvo das investigações da Polícia Civil. Foi nessa época que, segundo Pelissa, ele aceitou pagar pela defesa dos PMs.

Num primeiro momento, Pelissa exerceu, na polícia, o direito de permanecer em silêncio. Porém, depois que foi preso provisoriamente, em setembro de 2020, trocou de advogado e deu um depoimento à GCCO (Gerência de Combate ao Crime Organizado) em Cuiabá, que àquela altura já havia assumido o inquérito da chacina.

fazenda promissão - José Medeiros/UOL - José Medeiros/UOL
Sede da Fazenda Promissão, em União do Sul (MT)
Imagem: José Medeiros/UOL

O fazendeiro confirmou à polícia que havia procurado o sargento Santos para pedir supostamente uma proteção na sua propriedade, mas negou "veementemente ter mandado ou mesmo autorizado a execução de qualquer pessoa". Ele disse que em 18 de abril chegou a receber de Santos, por telefone, fotografias de três homens presos, que um deles ele reconheceu como muito parecido com o desaparecido Paulo Gustavo Lopes —Pelissa disse que inutilizou o aparelho logo depois, por orientação do seu advogado.

O sojicultor afirmou que, quatro dias após os desaparecimentos, foi procurado pela Polícia Civil de Sinop e "contou apenas por alto o que havia ocorrido, mas não deu muitos detalhes". Ao sair da delegacia, telefonou para o advogado criminalista Adriano Bulhões para pedir ajuda. Após Pelissa relatar ao seu defensor o que houve, foi marcada uma reunião entre os dois e o PM Evandro dos Santos no escritório do advogado.

"Na reunião, Dos Santos insistia em tom ameaçador que não tivesse seu nome vinculado no caso, pois não queria problemas", disse Pelissa à Polícia Civil em setembro de 2020. O fazendeiro disse que respondeu ao PM "que iria contar a verdade, pois não teria como esconder o que houve". De acordo com Pelissa, o sargento PM "concordou que poderia contar [à polícia] que pediu seu apoio, mas sem contar todas as informações".

Pelissa disse que assim foi feito numa primeira declaração à polícia. Semanas depois, contudo, ele disse que recebeu uma ligação de Santos "dizendo que precisavam acertar algumas coisas e que o interrogado [Pelissa] teria que acertar com o advogado deles, e que o advogado seria dr. Alexandre".

Advogado diz que foi contratado para a defesa técnica dos policiais

Localizado por telefone pelo UOL na terça-feira (22), o advogado Alexandre Rodrigues Pereira disse que até então não conhecia nenhum dos PMs e que foi procurado por Pelissa, e não pelos policiais. Segundo Alexandre, provavelmente seu nome foi lembrado pelos PMs porque ele é um conhecido advogado criminalista na região de Sinop.

O advogado confirmou que combinou honorários e foi contratado por Pelissa, mas os valores seriam exclusivamente para a defesa técnica do seu escritório, que seria muito exaustiva e se estenderia por anos. "Ele está [estava] me procurando para advogar para ele e para os policiais. Eu cobrei um valor 'x', porque envolve Tribunal do Júri... Ninguém sabia, nem ele, sequer quantos policiais estavam envolvidos. [...] Teria que fazer a defesa desde o inquérito até o Tribunal do Júri de todos eles. Aí ele me fez uma proposta de não advogar para ele, porque ele já tinha um advogado, só para os policiais."

No termo do distrato do acerto, entregue por Pelissa à Polícia Civil, é informado que os serviços advocatícios custariam ao todo R$ 1 milhão "para atuação na defesa do sargento PM Evandro dos Santos e outros policiais militares, até o limite de oito [policiais]".

O advogado disse ao UOL desconhecer qualquer ameaça dos PMs ao fazendeiro e afirmou que chegou a indagá-lo, naquela época, se estava sofrendo alguma coação para contratá-lo. Segundo o advogado, o fazendeiro respondeu que não, que tinha uma ótima relação com os policiais. O defensor reconheceu que não era muito comum uma iniciativa como a de Pelissa, de pagar pela defesa de terceiros, por isso a dúvida a respeito de supostas pressões.

Acertou-se o pagamento de uma primeira parcela de R$ 300 mil, segundo o depoimento de Pelissa. Conforme notas fiscais e outros documentos entregues pelo fazendeiro à polícia, foram entregues cerca de 12 mil sacas de milho, a partir de junho de 2020, para uma fazenda em Sinop. Segundo o advogado Alexandre, esse sistema do pagamento foi um pedido de Pelissa, que não queria "que aparecesse" a contratação em defesa dos policiais.

O advogado disse que chegou a atuar na defesa dos policiais ao impetrar habeas corpus para soltá-los de prisões provisórias que sofreram em agosto de 2020. Mas após a prisão de Pelissa, na mesma operação policial, a relação mudou porque o fazendeiro trocou de advogado. Alexandre disse que telefonou para um irmão do fazendeiro para avisar que "o elo de confiança está desfeito porque não conheço esse advogado que ele contratou agora". Ele disse que "dessa forma, não tenho interesse, passa o número da conta dele que eu vou devolver o dinheiro".

Na sequência do distrato do acerto, em 4 de setembro de 2020, Alexandre fez três transferências bancárias, no valor total de R$ 350 mil, para a conta pessoal de Pelissa no Banco do Brasil, devolvendo o valor que havia recebido em sacas de milho.

Fazendeiro afirmou que pagou à TV para reportagem não ser divulgada

No seu depoimento de setembro de 2020, Pelissa também falou sobre pagamentos feitos à Real TV, afiliada da Record em Sinop. Ele disse que em meados de maio, semanas depois dos desaparecimentos na fazenda, ele foi procurado por um repórter da emissora que "disse estar de posse de todo o material referente aos fatos ocorridos na Fazenda Promissão e pronto para divulgar em rede nacional". O fazendeiro disse que o repórter "queria saber se o interrogado [Pelissa] tinha algo a dizer, em tom ameaçador".

Pelissa disse que acionou seu então advogado, Adriano Bulhões. O advogado, segundo o fazendeiro, "entrou em contato com um homem que é o responsável pela TV Real na cidade" e depois disse a Pelissa "que a emissora exigiu R$ 500 mil para não veicular a matéria referente aos fatos".

O fazendeiro disse que não poderia pagar esse valor e pediu ao advogado "que conseguisse diminuir o valor". Dias depois, segundo Pelissa, Bulhões "disse que eles [TV] aceitariam R$ 100 mil".

"Sem saída, o interrogado [Pelissa] acabou concordando com o valor, mas pediu apenas que realizassem alguma transação comercial, pois precisava emitir nota fiscal, uma vez que não tinha como dispor do dinheiro fora da contabilidade", disse Pelissa. Foi então "proposto um contrato de veiculação de comercial de sua empresa Agropel Semente na TV Real, em horário pouco procurado", no valor de R$ 100 mil.

"O interrogado [Pelissa] não teve opção e assinou o contrato, embora não tivesse qualquer interesse em fazer propaganda", afirmou o sojicultor à polícia.

Em seu depoimento à polícia, o advogado Bulhões confirmou que foi acionado pelo seu cliente na época, Pelissa, que foi até a emissora de TV e "explicou a situação" ao então proprietário, que o advogado chamou de Marcos, "tentando resolver a situação de Agenor". Segundo Bulhões, Marcos "disse já estar sabendo do caso da fazenda e que estariam chegando muitas denúncias e informações acerca do caso, e que o custo para resolver isso seria muito alto". Segundo Bulhões, foi acertada a cifra de R$ 100 mil.

O advogado informou o valor a Pelissa e "sugeriu que tentasse conseguir uma forma de regularizar a situação, quando o declarante [Bulhões] sugeriu elaborar um contrato de veiculação de propagandas da empresa, como de fato foi feito". O fazendeiro entregou à polícia notas fiscais que indicam o pagamento de quatro parcelas, no valor total de R$ 70 mil, dos R$ 100 mil previstos.

Diretor de TV diz que pagamentos eram propaganda e contrato foi cancelado

O atual diretor-geral da Real TV, Antonio José de Gois, disse ao UOL que na época dos fatos ele não exercia cargo na emissora —exercia a função de secretário parlamentar lotado na Câmara dos Deputados, em Brasília. Indagado sobre quem seria a pessoa responsável pela emissora na época, não houve esclarecimento.

Sobre os pagamentos feitos pela empresa de Pelissa à TV, Gois afirmou, em mensagem por escrito, que "em propaganda sim, eles fizeram um contrato de alguns meses, mas depois que foi rodada a matéria do sr. Pelissa, que foi preso por essas acusações, foi cancelado [o contrato] e inclusive o advogado que pegou o caso um dia antes da soltura do acusado ligou para o responsável pela TV pedindo o dinheiro de volta porque saiu a matéria. Mas o contrato era de publicidade e não para não divulgar as notícias".

Gois disse que a TV divulgou o caso em seu noticiário, incluindo a prisão de Pelissa, em agosto de 2020.

Gois disse ainda que o nome do colunista do UOL "nas últimas duas semanas foi muito bem usado aqui no Mato Grosso". A reportagem esteve na região entre o fim de maio e o início de junho para a apuração da reportagem. Indagado sobre quem teria "usado" o nome do colunista e com qual propósito, Gois afirmou que "explico desde que você nos diga para nosso site como você conseguiu detalhes do processo se está em segredo de Justiça". Indagou ainda "se houve algum pagamento para o Rubens pessoa física para fazer matérias que sejam juntadas aos autos e assim tentar inocentar o possível mandante do crime". Gois também perguntou se o colunista "foi contratado por algumas das partes para fazer matérias".

A coluna publica, desde a sexta-feira passada, uma série de seis reportagens sobre os desaparecimentos na fazenda Promissão, que podem ser conferidas a partir deste link. Nunca houve vínculo com as partes relatadas na série jornalística.

Também localizado pela reportagem por telefone, o advogado Adriano Bulhões disse que "não advoga mais para Pelissa e fica complicado [responder às dúvidas] por questão do segredo e advogado". "Se eu estivesse no caso, não teria problema nenhum, mas agora não tem como falar de uma situação que não sou advogado."

Indagado sobre ele próprio ter detalhado, em seu depoimento prestado em outubro passado, as conversas para acertar os pagamentos à TV, Bulhões disse que "não se recorda dessa situação". "Você menciona meu depoimento mas eu não sei se é isso que ocorreu, se não é, estou fora [do escritório], não consigo nem olhar nos autos na verdade."

O atual advogado de Pelissa, Valdriangelo Fonseca, disse há duas semanas que tudo o que o seu cliente tinha a dizer foi dito nos autos do processo. Pelissa não aceitou dar entrevista à reportagem.

O advogado do sargento PM Evandro dos Santos, Ricardo Monteiro, procurado pela reportagem nesta terça-feira (22), não deu retorno a um pedido de explicações. Na semana passada, ele disse que seu cliente não cometeu crimes na fazenda Promissão. O PM admite ter estado na fazenda no dia dos desaparecimentos, mas desconhece tiroteio ou chacina ocorridos na propriedade.