Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Braga Netto propaga atribuição fake das Forças Armadas já rechaçada no STF
A interpretação enviesada da Constituição já foi repelida duas vezes por ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) no ano passado. Isso não impediu que o ministro da Defesa, Braga Netto, atribuísse, num discurso proferido no último sábado (14) em Resende (RJ), um papel para as Forças Armadas que inexiste na Constituição: o de supostamente "assegurar a defesa" da "harmonia" entre os Poderes.
A fala de Braga Netto repete o que o presidente Jair Bolsonaro disse no último dia 12 durante uma cerimônia com oficiais generais. Também contrariando as decisões recentes do STF, ele afirmou que as Forças Armadas são "poder moderador".
A indiferença de Braga Netto sobre as decisões do STF acerca do tema é também um grave sinal da confusão estimulada por militares bolsonaristas da ativa e da reserva sobre o papel do Judiciário numa democracia. Em junho de 2020, conforme amplamente divulgado pela imprensa, o então vice-presidente do STF, hoje presidente do tribunal, Luiz Fux, desmontou e afastou a interpretação bolsonarista da Constituição. Em outro processo, o ministro do STF Luís Roberto Barroso havia decidido no mesmo sentido.
No discurso lido durante um evento para cadetes da Aman (Academia Militar das Agulhar Negras), Braga Netto disse no sábado ao lado de Bolsonaro: "Reafirmo que as Forças Armadas continuarão com fé em suas missões constitucionais, como instituições nacionais e permanentes, com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, para assegurar a defesa da pátria, a defesa da soberania, da independência e harmonia entre os Poderes e da manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro, que é o nosso verdadeiro soberano".
A palavra de Braga Netto é praticamente uma cópia de uma desinformação que circula em redes sociais bolsonaristas desde o ano passado. Há muito destaque, nesses círculos, a declarações do advogado Ives Gandra. O presidente cuidou de espalhar a fala de Gandra - que já afirmou em vídeo, em 2017, sua admiração pelo escritor bolsonarista Olavo de Carvalho, guru da família Bolsonaro. Em maio de 2020, Bolsonaro divulgou em redes sociais o link de uma live do advogado intitulada "Chegou a hora do 142".
Com base em uma leitura própria do artigo 142 da Constituição - já desmontada duas vezes pelo STF -, Gandra tem dito que caberia às Forças Armadas o papel de "moderar os conflitos entre os Poderes". Em maio de 2020, por exemplo, Gandra afirmou à "Folha de S. Paulo" que, "pela Constituição, se houver conflito entre os Poderes e um deles recorrer às Forças Armadas, quem repõe a lei e a ordem são elas".
O suposto papel moderador dos militares, contudo, inexiste na Constituição, segundo diversos especialistas e as decisões recentes do Supremo. O artigo 142 lista três atribuições das Forças Armadas: "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Nada fala sobre "assegurar" a "harmonia" entre Poderes.
Se o texto constitucional atribuísse tal papel aos militares, eles teriam uma função de árbitros ou mediadores de conflitos entre, por exemplo, o Palácio do Planalto e o STF - quadro hoje instalado no país a partir de provocações de Bolsonaro e de seus auxiliares, como o general Augusto Heleno, desde o ano passado sobre diversas decisões tomadas por ministros do tribunal, incluindo o uso das urnas eletrônicas nas eleições. Assim, se fosse verdadeiro o que disse Braga Netto, Bolsonaro poderia acionar as Forças Armadas contra o STF sob a falsa alegação de recuperar "a harmonia" entre as partes em conflito.
Embora advogados como Gandra levantem a tese do "poder moderador", e embora militares tenham defendido para si esse mesmo papel ao longo de décadas no país, não é comum que autoridades militares na atualidade venham a público defender essa interpretação. O discurso de Braga Netto em Resende, por exemplo, é diferente do que foi declarado há um ano pelo seu próprio antecessor imediato no cargo de ministro da Defesa, o general da reserva Fernando Azevedo.
Em maio de 2020, Azevedo afirmou, em nota à imprensa: "As Forças Armadas cumprem a sua missão Constitucional. Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado, que consideram a independência e a harmonia entre os Poderes imprescindíveis para a governabilidade do País". "Considerar imprescindível" a harmonia, como diz a nota, é muito diferente de abraçar o papel de "assegurar a defesa" da harmonia.
Em resposta às inúmeras especulações bolsonaristas que começaram a ganhar corpo em 2019, o PDT (Partido Democrático Trabalhista) acionou o STF no ano passado por meio de uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade), nº 6457, para que o tribunal esclarecesse e acrescentasse trechos à Constituição sobre as atribuições das Forças Armadas. O partido requisitou que se deixasse esclarecido que "entre os Poderes da União não se fala de garantia de quaisquer deles entre si pelas Forças Armadas, mas, taxativamente, de independência e harmonia".
O PDT mencionou, na justificativa, "a polvorosa de setores da sociedade civil e das classes militares em desacordo quanto à destinação constitucional das Forças Armadas, repercutindo imediatamente na movimentação das forças políticas e dos compromissos democráticos no enfrentamento de sucessivas crises institucionais (e.g. impeachment e persecuções criminais de altos dignitários) e, mais recentemente, de calamidades públicas (v.g. desastres ambientais, incêndios e pandemia)".
'Inexiste poder moderador', escreveu Luiz Fux em 2020
Fux escreveu em decisão liminar em junho de 2020 que a expressão "garantia dos poderes constitucionais" contida no artigo 142 "não comporta qualquer interpretação que admita o emprego das Forças Armadas para a defesa de um Poder contra o outro".
"A atuação do Exército, da Marinha e da Aeronáutica para a 'garantia dos poderes constitucionais' refere-se à proteção de todos os três Poderes contra ameaças alheias a essa tripartição. Trata-se, portanto, do exercício da 'defesa das instituições democráticas' contra ameaças de golpe, sublevação armada ou movimentos desse tipo", decidiu Fux.
"Inexiste no sistema constitucional brasileiro a função de garante ou de poder moderador: para a defesa de um poder sobre os demais a Constituição instituiu o pétreo princípio da separação de poderes e seus mecanismos de realização. O conceito de poder moderador, fundado nas teses de Benjamin Constant sobre a quadripartição dos poderes, foi adotado apenas na Constituição Imperial outorgada em 1824. [...] Nenhuma Constituição republicana, a começar pela de 1891, instituiu o Poder Moderador. Seguindo essa mesma linha e inspirada no modelo tripartite, a Constituição de 1988 adotou o princípio da separação de poderes, que impõe a cada um deles comedimento, autolimitação e defesa contra o arbítrio, o que apenas se obtém a partir da interação de
um Poder com os demais, por meio dos mecanismos institucionais de checks and balances [freios e contrapesos] expressamente previstos na Constituição", escreveu Fux.
O ministro mencionou a mesma nota oficial, acima citada, do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo para dizer que sua posição era reconhecida pelo próprio Ministério da Defesa. O processo ainda será julgado pelo plenário do tribunal.
A decisão de Fux é do dia 12 de junho de 2020. Dois dias antes, o ministro Luís Roberto Barroso analisara um mandado de injunção, de nº 7311, ajuizado por um advogado em face do Congresso Nacional que pretendia "a regulamentação do art. 142 da Constituição, de forma a estabelecer o escopo e o modo de atuação das Forças Armadas, em situações de ameaça à democracia".
'Terraplanismo constitucional', disse Barroso em decisão
Ao arquivar o mandado, Barroso decidiu que, "em nenhuma hipótese, a Constituição submete o poder civil ao poder militar".
"É simplesmente absurda a crença de que a Constituição legitima o descumprimento de decisões judiciais por determinação das Forças Armadas. Significa ignorar valores e princípios básicos da teoria constitucional. Algo assim como um terraplanismo constitucional", escreveu o ministro.
Barroso lembrou que seu entendimento "é, ainda, chancelado pelo comportamento de todos os Chefes do Executivo passados, que jamais cogitaram de convocação das Forças Armadas, a despeito das crises que enfrentaram; bem como por pronunciamentos atuais do Poder Legislativo e de múltiplos órgãos da sociedade civil, aos quais igualmente compete a interpretação e aplicação da Constituição".
O ministro transcreveu uma manifestação do então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ): "O art. 142 da Constituição não autoriza a realização de uma 'intervenção militar constitucional', ainda que de caráter pontual. [...]. Nenhum dispositivo constitucional e legal faz qualquer referência à suposta atribuição das Forças Armadas para o arbitramento de conflitos entre poderes. No papel de garantia dos poderes constitucionais, o presidente da República apenas deve, em ato vinculado, atender a requisição dos Presidentes dos demais poderes [...]. Eventuais conflitos entre os Poderes devem ser resolvidos pelos mecanismos de freios e contrapesos existentes no texto constitucional, ao estabelecer controles recíprocos entre eles".
Barroso afirmou, na sua decisão: "Não falam em nome das Forças Armadas, portanto, os intérpretes heterodoxos da Constituição. A atribuição a elas de um impróprio poder moderador, com o risco grave da contaminação política, não eleva as Forças Armadas, mas, ao contrário, diminui o seu papel de defesa da Pátria - não de governos - e de garantia dos Poderes, sem riscos de facciosismo".
A posição dos ministros do STF, que deve também refletir um espírito de autodefesa da instituição, está longe de ser minoritária, é apoiada por inúmeros especialistas. Numa entrevista para a BBC News Brasil em 2020, por exemplo, o professor de direito constitucional da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas) Roberto Dias lembrou que "estamos na vigência da Constituição de 1988, que não prevê um poder que estaria acima dos outros para intermediar". "A Constituição não dá às Forças Armadas o poder de intervenção militar em outros poderes. [...] O presidente tem 200 anos de atraso na sua interpretação da Constituição", disse Dias na ocasião.
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