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Thaís Oyama

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Esquerda ajudou evangélicos a serem "mais antipetistas que qualquer madame"

Lula em evento com evangélicos, após leitura da "carta compromisso" - RICARDO STUCKERT
Lula em evento com evangélicos, após leitura da "carta compromisso" Imagem: RICARDO STUCKERT

Colunista do UOL

20/10/2022 11h06

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Na eleição de 1989 contra Fernando Collor de Mello, Lula foi atacado por evangélicos pentecostais. O ex-metalúrgico, diziam lideranças religiosas, seria um "defensor do comunismo" e iria destruir a liberdade religiosa no país. Collor ganhou aquele pleito e estudos da época mostram que os evangélicos compuseram o grupo religioso que mais rejeitou a candidatura petista.

Sete eleições depois, Jair Bolsonaro (PL) conquista, segundo o Datafolha, 66% dos eleitores desse grupo usando, entre outros instrumentos, a mesma fake news de que Lula vai acabar com a liberdade religiosa no Brasil fechando os templos evangélicos.

O avanço galopante do bolsonarismo sobre os evangélicos obrigou ontem o PT a falar oficialmente para esse segmento — que a essa altura representa mais de 30% dos brasileiros.

Em sua "Carta aberta ao povo evangélico", Lula rebateu as fake news sobre o fechamento das igrejas e a criação de banheiros "unissex" (que receberiam gêneros diversos).

Afirmou ser contra o aborto e demonstrou, por fatos e feitos do seu governo, a inverossimilhança do boato de que advogaria o fim da liberdade religiosa no Brasil.

O ex-presidente atestou ainda no documento que, caso seja eleito, o Estado não interferirá no "lar" e na "orientação dos pais" sobre a educação de seus filhos.

Leia-se: o PT não irá "sexualizar" as crianças, conforme espalha o bolsonarismo, e não destruirá "a família" (conforme idealizada por segmentos evangélicos).

O texto assinado por Lula é preciso e vai aos pontos certos. Mas chega com um atraso de três décadas.

"A esquerda sempre desprezou o universo evangélico e tratou seu integrantes como ignorantes ou idiotas manipuláveis", afirma Kenner Terra, pastor batista e professor de Ciências das Religiões na Faculdade Unida de Vitória.

Como exemplos desse desprezo, o professor cita o fato de que, há décadas, eventos religiosos em universidades contam com a presença de representantes da Igreja Católica e de religiões de matriz africana, entre outras, mas nunca de lideranças pentecostais.

"Ou o diálogo da esquerda se dá com evangélicos progressistas ou não tem diálogo", diz o pastor — que considerou a carta de Lula "positiva e imprescindível".

Os pentecostais compõem hoje 60% do público evangélico.

São, em sua maioria, mulheres, negros e pobres. Moram na periferia dos grandes centros brasileiros e são moralmente conservadores. A maior parte é a favor da redução da maioridade penal e contra a união homoafetiva, a adoção de crianças por casais gays e a educação sexual nas escolas.

Aliás, a maioria não bebe — detalhe que Lula esquece quando repete em discursos seu bordão de que os brasileiros querem "voltar no fim de semana a comer um churrasquinho e tomar sua cervejinha". Bastaria o ex-presidente acrescentar "ou uma coca-cola, para quem não bebe" para sinalizar que os pentecostais e neopentecostais não estão fora do seu campo de visão, afirma Terra.

Há décadas a esquerda finge não ver os evangélicos. Há décadas ela alimenta a falsa noção de que a rejeição à sigla nas urnas é um fenômeno restrito às elites brancas e escolarizadas. Juntos, esses equívocos contribuem para que, a cada eleição, evangélicos pentecostais se revelem "mais antipetistas que qualquer madame", como escreveu o cientista político e pesquisador da Universidade de Zurique, Victor Araújo, em seu livro "A religião distrai os pobres?".

A carta lida ontem por Lula não sugere apenas que o PT, premido pelas circunstâncias, começa a abrir os olhos para o crescimento evangélico.

O fato de um candidato à presidência à frente das pesquisas decidir demonstrar publicamente seu respeito a pontos de vista em grande medida rejeitados por seu partido atesta que o peso e a dimensão desse segmento se tornaram gigantescos.

E mostra também que, num universo heterogêneo como é o evangélico, é o grupo de fieis mais conservadores que está vencendo. A esquerda terá de dormir com esse barulho —e aprender finalmente a lidar com ele.