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Thiago Herdy

REPORTAGEM

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Testemunha viu 'corpos amontoados' pela polícia em ação em Varginha (MG)

Colunista do UOL

20/12/2021 04h00

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O relato de uma pessoa que trabalha em uma unidade de saúde de Varginha (MG) e que participou do atendimento a 26 suspeitos de crime mortos durante uma operação policial contra o chamado "novo cangaço", em outubro deste ano, contradiz o que foi registrado pelos agentes no boletim de ocorrência.

Conduzida pela Polícia Militar do governo de Romeu Zema (Novo) e com apoio da Polícia Rodoviária Federal, sob gestão de Jair Bolsonaro (PL), a ação foi a mais letal contra quadrilhas suspeitas de promover assaltos a banco já realizada no país e é alvo de investigação da Polícia Civil e do Ministério Público mineiros.

Em áudio obtido pela reportagem, uma pessoa que trabalha em posto da cidade afirma que, na madrugada de 31 de outubro, chegaram às unidades de saúde do município "corpos amontoados" em carrocerias de caminhonetes, em vez de feridos com alguma chance de atendimento, como registraram os agentes no documento oficial.

Ouça o áudio abaixo:

Testemunho é central para investigação

Os testemunhos dessa pessoa e de seus colegas e os prontuários médicos registrados na unidade são elementos chave da investigação do episódio conduzida pelo MP mineiro. A conclusão está prevista para os primeiros meses de 2022, de acordo com fontes ligadas às investigações.

No boletim de ocorrência, os agentes contaram ter entrado em confronto com os integrantes de uma organização criminosa que planejava assaltar uma central de distribuição de valores do Banco do Brasil e relataram a apreensão de armamento pesado e milhares de munições.

Após realizarem o que descreveram como "domínio do local", os policiais informam ter "providenciado o socorro dos feridos para a UPA/Sion e Hospital Bom Pastor", numa referência às duas unidades de saúde da cidade do sul de Minas que receberam os suspeitos.

O cenário descrito no áudio reforça a hipótese de que o local do confronto foi modificado pelos agentes, diante da remoção dos corpos de baleados já sem vida.

As assessorias do governo de Minas, da Secretaria de Segurança Pública, da Polícia Militar e da Polícia Rodoviária Federal informaram à coluna que não comentariam o áudio.

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Quatro dos 26 mortos pela polícia em Varginha: Eduardo Pereira Alves, Nunis Azevedo Nascimento, Raphael Gonzaga Silva e Thalles Augusto Silva; os corpos de Ricardo Gomes de Freitas e Gerônimo da Silva Sousa Filho também foram liberados
Imagem: Arte/UOL

Corpos amontoados

"É uma quadrilha de bandidos, eles estavam vindo na estrada da Flora, a Polícia Federal abordou eles, fuzilaram eles. Chegaram aqui na porta da UPA às 6h30 com umas caminhonetes dos próprios bandidos, com corpos amontoados dentro da carroceria, pedindo maca", diz a pessoa na mensagem para um interlocutor não identificado pela reportagem.

A pessoa seguiu seu relato: "quando eu abri a tampa da caminhonete, tinha vários corpos fuzilados, amontoados, exposição de massa encefálica, braço quebrado, barriga furada, queixo estourado, uma cena de terror".

E continua: "aí a gente pediu para eles virem pelo estacionamento e começamos a puxar os corpos, descarregar os corpos. No momento o IML está aqui e estão fazendo a identificação, (vão) tentar fazer a autopsia dos corpos e vão sair com os corpos daqui a pouco da UPA. Cena de terror, mesmo. Típico de um dia das bruxas".

A reportagem confirmou com duas profissionais de saúde de Varginha a autenticidade do áudio e identificou o local de trabalho de quem fala no áudio. Optou por não citar seus dados como forma de proteger essa pessoa.

A reportagem também teve acesso a imagens dos suspeitos feitas pelos agentes de segurança logo após a ação policial, que confirmam a gravidade das lesões citadas no áudio obtido pela reportagem.

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Arsenal apreendido durante operação contra assalto a bancos em Varginha (MG), de acordo com a Polícia Militar
Imagem: Divulgação/Ministério da Justiça e Segurança Pública

Hipótese de execução

Para o coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas e integrante do Conselho Estadual de Direitos Humanos de MG, Robson Sávio Reis Souza, a "dinâmica da ação policial durante o suposto confronto" é um ponto crucial da apuração.

"Na versão oficial, houve troca de tiros, os infratores foram baleados, socorridos e faleceram posteriormente. O áudio indica que os infratores chegaram mortos na unidade de saúde. Sendo verdade, a hipótese de execução, obrigatoriamente, deverá ser considerada pelos investigadores", disse o especialista.

O episódio em Minas chamou a atenção de especialistas em segurança, que defendem a importância da sinergia entre forças policiais para prevenir e impedir ataques a bancos, mas com atenção ao fato de que a morte deve ser tratada como exceção, e não regra na atividade policial.

"Não há autorização prévia para que a força letal seja utilizada. É preciso que ela seja precedida não pelo caráter de quem é alvo da polícia, mas de condições fáticas de legítima defesa e impossibilidade de outra medida. Justiça e justiçamento são coisas muito diferentes", escreveu o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, em artigo publicado na semana seguinte ao episódio em Minas.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 a polícia mineira foi a segunda menos letal do país, atrás apenas do Distrito Federal. Enquanto no país a taxa média de mortalidade por intervenções policiais foi de 3 por grupo de 100 mil habitantes, no estado, a taxa foi de 0,6.

Investigações sob sigilo

A reportagem perguntou ao governo de Minas, à Secretaria de Segurança Pública e à polícia militar quantos dos 26 suspeitos baleados naquela noite chegaram com vida às unidades, mas os órgãos preferiram não responder.

A assessoria de imprensa do governo de Minas informou apenas que, "conforme informado em coletiva no dia da ocorrência, todos os feridos foram socorridos no hospital".

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Rogerio Greco, secretário da Segurança Pública de MG
Imagem: Divulgação

A mesma pergunta foi feita à assessoria da Secretaria Municipal de Saúde de Varginha, que respondeu "não prestar esse tipo de informação".

"A investigação criminal corre em sigilo, motivo pelo qual deverá tal informação ser obtida através dos órgãos de segurança pública ou do Ministério Público", informou a secretaria.

O Ministério Público de Minas também não quis comentar o áudio ou o andamento das investigações.

"As investigações correm em segredo de Justiça. Portanto, não é possível informar detalhes", informou a assessoria do MP mineiro.

Ação comemorada por secretário

Nos dias seguintes à ação que resultou na morte dos 26 suspeitos, o secretário de Segurança Pública de Minas, Rogerio Greco, fez uma live em uma de suas redes sociais para comemorar a operação como "muito bem sucedida" e com ataques à imprensa, por entender que a mídia "dá muito valor a marginal".

"Houve uma inversão de valores violento, a começar pela mídia. Às vezes fico me perguntando, por quê, isso? Por que essa mídia dá tanto valor a marginal, onde ela própria também é vítima desses camaradas? E contra a polícia? Não dá pra entender, só se for um doente mental, é um psicopata um cara que faz uma coisa dessas", diz o secretário.

Greco anunciou também que sua primeira medida, no dia seguinte, seria "mandar uma nota de elogio para a ficha funcional dessa turma".