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Wálter Maierovitch

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mapa com avanço do garimpo coloca Bolsonaro no centro do genocídio yanomami

Criança yanomami no Hospital Infantil Santo Antônio, em Boa Vista (RR), em janeiro de 2023 - Michael Dantas/AFP
Criança yanomami no Hospital Infantil Santo Antônio, em Boa Vista (RR), em janeiro de 2023 Imagem: Michael Dantas/AFP

Colunista do UOL

12/05/2023 12h53

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Genocídio, genocídio, genocídio. Assim teria se manifestado o saudoso jurista e humanista polonês Rafael Lemkin após a leitura do instruído e fundamentado relatório, de agosto de 2022, elaborado pela Funai e revelado hoje pelo UOL.

O relatório oficial, observada a hierarquia administrativa funcional, foi encaminhado a Anderson Torres, então ministro de pasta da Justiça e, em razão disso, agente da autoridade do presidente da República.

Atenção: o ministro de Estado não tem autoridade própria, mas decorrente de delegação do presidente da República. Por isso e legalmente, fatos graves, a incluir tragédias em curso (yanomami), precisam ser comunicadas ao chefe do governo, ou melhor, ao presidente da República.

No caso, era obrigatório que ao então presidente Bolsonaro tivesse sido dada ciência do relatório. O agente da autoridade do presidente Bolsonaro, ministro Anderson Torres, ficou com a incumbência de promover, rapidamente, o ilegítimo e ilegal arquivamento. Só aí, temos consumado crime de prevaricação.

Fora, evidente, os crimes de genocídio e contra a humanidade, tipificados no artigo 8º do Estatuto de Roma, subscrito pelo Brasil e criador do TPI (Tribunal Penal Internacional), que tem jurisdição no nosso país.

O relatório que deu detalhes do avanço do garimpo na Terra Yanomami solicitava tomada de medidas de policiais federais, repressivas e de contraste. Para o presidente da Funai da época as ações deveriam ser "urgentes, efetivas e assertivas".

Isto porque ocorria, em Roraima e em Terra Indígena Yanomami, vasta área ocupada por garimpo ilegal que, à luz do direito, é crime de efeito prolongado no tempo. Como também caracteriza, em concurso material, crime autônomo de associação criminosa: a máfia do garimpo. Em outras palavras, cabiam prisões em flagrante delito. E a lei impõe às autoridades o dever de executar prisões em flagrante, em especial diante de crimes continuados e de efeitos delinquenciais permanentes.

Pelo que se extrai do relatório e da reportagem do UOL, as consequências eram graves, a envolver crianças, adultos e idosos.

Por exemplo, os resíduos químicos utilizados na garimpagem envenenaram as águas dos rios, a provocar danos à saúde dos indígenas. Os desmate pelos garimpeiros resultaram na migração dos animais que eram caçados pelos indígenas para a alimentação. A desnutrição aconteceu. E o desmatamento gerou, também, a proliferação de contágios: a incidência da malária chegou a dobrar. A presença de garimpeiros causou a difusão de doenças transmissíveis pelo homem.

A tragédia era anunciada, como bem destacado no título da reportagem: 570 crianças yanomamis morreram. O crime organizado montou um estrutura empresarial: 18 pistas clandestinas de pouso de aeronaves, 80 centros de garimpagem, 13 postos logísticos e três cais de porto.

Volto ao citado Rafael Lemkin, seis vezes indicado para receber o Nobel da Paz. Deve estar ele a chorar copiosamente à beira da sua sepultura no cemitério judeu do famoso e bíblico monte Hebron, diante do genocídio e crimes contra humanidade a vitimar os yanomamis. De se imaginar a raiva pelo descaso e conivência de Bolsonaro e Anderson Torres.

Lemkin criou um neologismo: genocídio. O jurista considerava o termo homicídio incompleto. Para o holocausto de cerca de 1,8 milhões de armênios eliminados pelos turcos-otomanos a partir de 25 de abril de 1915, o termo homicídio, segundo Lemkin, não dava a exata dimensão e nem exprimia a reprovação e indignação pós-Primeira Guerra.

Profundo conhecedor do grego antigo e do latim, Lemkin juntou a palavra grega "genos", no sentido de raça, família ou tribo, ao sufixo latino "cidio", a significar matar alguém. Daí, saiu genocídio. Isso ocorreu em 1944, quando usado por Lemkin na obra de título Axis Rulle in Occuped Europe - Law of Occuption.

Lemkin assessorou as Nações Unidas e o termo genocídio foi empregado, em 1955, no texto aprovado da Convenção das Nações Unidas para a repressão e a prevenção aos delitos de genocídio.

Atenção, novamente.

Destaco dois ensinamentos de Lemkin, em respeito ao povo yanomami, vítima de Bolsonaro e do seu desgoverno. Aliás, um Bolsonaro ciente dos graves fatos e que os escondeu por entender, em desrespeito a seres humanos, prejudicial à sua campanha à reeleição presidencial.

Primeiro ensinamento. O genocídio representa uma ofensa ao Direito das Gentes, também chamado de Direito Internacional Público.

Um dos móveis do Estatuto de Roma foi estabelecer uma jurisdição internacional em face de ofensa ao Direito das Gentes. Com efeito, o Estatuto de Roma de 1998 tipifica os seguintes ilícitos: genocídio, crimes contra a humanidade, crime de guerra e de agressão internacional.

Desde já fica afastada a tese de que bastaria a atuação do Ministério Público brasileiro. Não basta. Os crimes de genocídio e contra a humanidade afetam o Direito Internacional e não apenas o direito penal interno, do Brasil.

Segundo ensinamento. Este inteiramente copiado, em 1955, pela Convenção das Nações Unidas para a prevenção e a repressão aos delitos.

Para quem tem olhos de ver e inteligência para compreender a gravidade da conduta de Bolsonaro "et caeterva", vai parecer ter Lemkin escrito pensando neles. Diz a convenção escrita pelo polonês:
(a) Devem ser vedados pelos estados nacionais todos os atos (condutas) abaixo tipificados e previstos com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo étnico, um grupo nacional, um grupo social ou religioso. Condutas:
1. Matar membros dos grupos.
2. Causar sérios danos físicos ou mentais a membros dos grupos
3. Submeter o grupo a condições de vida intensa a provocar a sua destruição física, total ou parcial
4. Impor medidas voltadas a prevenir os nascimentos dentro do grupo.
5. Transferir à força crianças de um grupo a um outro diverso.

Em conclusão. Houve crime de genocídio contra os yanomamis. Não precisa ser operado do Direito para perceber.

A desculpa de falta de dinheiro para a realização de operação de salvação dos yanomamis, dada pelo senador Hamilton Mourão, à época vice-presidente da República, soa como confissão de culpa. E só serve para criminalmente agravar as responsabilidades.

O relatório, os documentos, a incluir fotos e mapas, serão de muita utilidade ao Ministério Público Internacional, que já apura o acontecido.

Esse material todo será, para o Ministério Público Internacional, peça de fundamental importância para a elaboração de um mosaico criminal, com crimes de genocídio e contra a humanidade.