Wálter Maierovitch

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Opinião

Quando a fome é usada como arma de guerra

Muitas vezes, o Conselho de Segurança das Nações Unidas fica parecido com a deusa romana Veritas, que era a voz da verdade e da ética.

Veritas vivia grande parte do tempo no fundo de um poço. Sua voz, então, não era ouvida, ecoava fraca: "flatus vocis" (fraca voz).

Quando todos os chefes de Estados membros das Nações Unidas já estavam carecas de saber do uso da fome como arma de guerra, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 2417.

Ela veda terminantemente o uso da fome como arma de guerra, por vitimar a população civil, não o combatente.

O direito humanitário internacional logo incorporou essa resolução protetiva. Garantir à população civil acesso aos víveres alimentares transformou-se dever dos Estados e obrigação dos líderes mundiais.

A Resolução 2417, frise-se, proíbe deixar a população civil morrer de fome como estratégia de guerra.

A verdade é que, num cenário de guerra, nenhum dos protagonistas acata a Resolução 2417. Nos conflitos na África, ninguém ouviu falar da supracitada resolução.

Ela assemelha-se à voz da deusa romana Veritas, ninguém escuta.

Para se ter ideia, um levantamento recente mostrou que 258 milhões de pessoas estão famintas, sem alimentos, em 58 países. Atenção: 85% delas vivem em zonas de guerra.

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Em outras palavras, nessas zonas de guerra, os alimentos e a água potável são utilizados como armas de guerra.

Guerra Rússia X Ucrânia

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia e a guerra de conquista teve início, falou-se de uma estratégia de Putin para deixar os europeus sem o pão cotidiano.

É que a Ucrânia, cuja bandeira amarela simboliza a importância econômica e alimentar do trigo dos seus campos, fornecia quase todo o trigo consumido nos países ocidentais europeus.

Os governantes europeus, diante do risco, passaram a importar o trigo de outros países.

No momento, a Rússia vence a guerra e os seus soldados atiram mais, pois os ucranianos economizam munições pela falta de fornecimento dos EUA.

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Lembrando que, no curso dessa guerra, houve cerco promovido pelos russos à cidade ucraniana de Mariupol, com ingresso de alimentos vedado. Os civis, não em guerra, entraram em desespero.

Nas guerras, as armas de fogo podem matar muito menos do que a fome. Por isso, deixar uma população faminta pode fazer parte de desumana geoestratégia.

Guerra Hamas X Israel

Crianças em acampamento improvisado para palestinos que fugiram para Rafah, no sul da Faixa de Gaza
Crianças em acampamento improvisado para palestinos que fugiram para Rafah, no sul da Faixa de Gaza Imagem: 30.jan.2024-Mahmud Hams/AFP

Na guerra Hamas-Israel, uma das estratégias empregadas pelo sanguinário premiê Benjamin Netanyahu foi a de reduzir a ajuda humanitária. Usar a escassez e a falta de alimentos.

Isso nada mais é do que usar a fome como arma de guerra.

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Como noticiado, civis palestinos, no destruído norte da faixa geográfica de Gaza, alimentaram-se de restos de animais mortos, alguns em avançado estado de putrefação.

Netanyahu vitimou civis inocentes, pois as redes de túneis do Hamas permitem armazenamentos de alimentos e água aos seus combatentes e aos da Jihad Palestina, um dos braços auxiliares.

Com os palestinos famintos, Netanyahu entendeu canhestramente que eles se voltariam contra o Hamas, ou melhor, os civis palestinos iriam culpar o Hamas pela situação. As pesquisas mostram o contrário, o aumento do ódio a Israel.

Com a matança de inocentes palestinos civis, apesar de as convenções da ONU e o direito internacional proibirem ataques que coloquem em risco uma população, Netanyahu colocou o presidente Biden numa situação delicada.

A exigida migração dos palestinos do norte para o sul, em direção à fronteira com o Egito, com grande concentração de pessoas na cidade de Rafah, apavorou o presidente norte-americano no campo dos direitos humanos.

O ingresso de alimentos pelo Egito e o trânsito por Rafah são constantemente impedidos por determinação de Netanyahu. Contrariando Biden, o premiê Netanyahu ameaça invadir Rafah, que está com falta de alimentos e remédios.

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Biden, prontamente e sem querer ficar contaminado pela imagem desumana de Netanyahu, anunciou a construção de ancoradouros na costa marítima de Gaza. E alimentos já estão sendo entregues.

Paralelamente, Oscar Camps, presidente da organização Proactiva Open Arms, furou o bloqueio marítimo israelense imposto a Gaza para, por barcos, fornecer víveres aos palestinos.

Diante disso, Netanyahu fala em corredores humanitários para esvaziar Rafah e, na sua visão, deixar lá só os combatentes do Hamas.

Ancoradouros humanitários

Esses ancoradouros de embarcações humanitárias, protegidos pelas frotas norte-americanas, estão sendo vistos como fundamentais para salvar a imagem eleitoral de Biden.

Auxílios humanitários já estão sendo desembarcado por píer, uma obra simples e de construção fácil, de acordo com os engenheiros navais norte-americanos. E seria aberto, a partir deles, um vale protegido para a distribuição de alimentos, medicamentos, produtos de higiene pessoal e roupas.

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Rafah

A pequena cidade de Rafah, na divisa com o Egito, tinha 280 mil habitantes antes da guerra. Com a coercitiva migração dos desassistidos palestinos do norte, está com 1,5 milhão de pessoas.

Se conseguir esvaziar Rafah de civis, Netanyahu poderá bombardear ou matar de fome os últimos batalhões do Hamas: como já informado nesta coluna, 20 dos 24 batalhões do Hamas teriam sido eliminados. E os quatro últimos estariam em Rafah.

Mas, atenção, muitos dos civis palestinos não sairão de Rafah. Eles não acreditam mais em Netanyahu, que já tinha prometido aos palestinos que migraram do norte um local pacífico e ajuda humanitária. Não cumpriu a promessa.

Pano rápido

Netanyahu ignora a Resolução 2417 do Conselho de Segurança da ONU e, quando convém, emprega a fome como arma de guerra, usa desse tipo de desumanidade.

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Como alertou Simone Garroni, diretor da fundação italiana Azione contro la Fame (Ações contra a Fome), "as guerras representam a principal causa da fome do mundo e, nos conflitos, a fome é previsível. E é isso que torna a guerra ainda mais inaceitável".

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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