STF deveria usar 'Gilmarpalooza' para aprender sobre maconha em Portugal
A erva canábica fêmea tem efeitos perturbadores do sistema nervoso central. Hoje, a maconha medicinal, vencido o proibicionismo estúpido, é empregada na ciência e na medicina, com resultados excelentes, em variadas situações.
A respeito do efeito perturbador, o historiador grego Heródoto, falecido em 425 a.C., já o havia percebido.
No quarto dos nove volumes da sua obra, Heródoto escreve sobre um povo nômade que circulava entre o mar Negro e o rio Danúbio.
Nos rituais fúnebres, esse povo utilizava uma planta, dada como sendo a maconha. Ela era queimada, com sementes, em barraca onde ficava o defunto. A fumaça era aspirada pelos pranteadores do morto. A fumaça dava conforto.
Para usar uma expressão do vetusto livro hindu dos Veda, a planta referida (hoje identificada como erva canábica) "libera a ânsia": o livro dos Vedas é traduzido como a obra do conhecimento.
Existe ainda a milenar lenda do deus hindu Shiva que, perdido num bosque, alimentou-se da folha da maconha e experimentou conforto e calma.
A maconha, com as suas propriedades terapêuticas reconhecidas por cientistas e médicos, anda perturbando votos de alguns ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).
Num voto reacionário, conservador e míope, o ministro Cristiano Zanin entendeu que não é inconstitucional a criminalização do porte e posse da maconha para uso pessoal, lúdico-recreativo.
O ministro André Mendonça trombou com a desinformação e, ao que parece, com a sua formação religiosa numa questão de Estado laico. Pelo jeito, vai querer continuar a ouvir o usuário ser chamado de maconheiro, vagabundo, criminoso.
Dias Toffoli, mais uma vez, trocou as bolas ao não perceber que estava diante de uma questão urgente que, por ser constitucional, cabe aos ministros da Corte suprema enfrentar e não adiar até exame pelo Legislativo.
Progressistas e humanistas
Entre os especialistas, Portugal é considerado o país com as melhores legislação e políticas sobre o fenômeno das drogas.
A Suécia proibicionista é o país de pior trato e de crença conservadora no proibicionismo. Com a criminalização, tenta inibir o consumo usando o medo da cadeia.
As políticas lusitanas foram implantadas há mais de 20 anos. Chegaram a alcançar, por bons anos, redução de consumo.
No momento, equipes multidisciplinares analisam resultados e desacertos, sem possibilidade de retrocessos e de volta à criminalização, ao proibicionismo com a cadeia como ameaça.
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Quero receberCom total acerto, Portugal entendeu que o porte de drogas para uso lúdico, recreativo, representa uma infração que não possui natureza criminal.
Por envolver questão de saúde pública, entendeu-se ser uma infração administrativa, não criminal, numa terra que está comemorando os 500 anos de Camões.
Em outras palavras. A proibição, em Portugal, é meramente administrativa. Para ficar claro, como estacionar automóvel em fila dupla, que é proibido pelo código de trânsito, sem ser crime. No Brasil, seria como fumar cigarro de tabaco em ambiente fechado.
Essa questão do uso lúdico, recreativo, não pode ser criminalizada, por razões técnicas e por envolver liberdade individual garantida constitucionalmente, quer em Portugal, quer no Brasil.
Criminalizar a cannabis para consumo pessoal significa ingressar na intimidade da pessoa humana.
Tribunal supremo
Como todos sabem, o STF é o guardião da Constituição.
No caso da erva canábica, o STF provocado, chamado, há mais de cinco anos, para reconhecer a inconstitucionalidade de uma situação criminalizada, a posse de três gramas de erva canábica para uso próprio.
Atenção: em geral, um grama é a quantidade para a confecção de um cigarro de maconha. No caso condenatório em exame pelo STF, três gramas correspondem a três cigarros.
Até o momento, a maioria dos ministros trilhou o caminho acertado. Ou seja, a questão, à luz da Constituição de 88, não pode ser considerada criminal.
Lembrando que uma condenação definitiva criminal gera efeitos sociais graves. Além da reincidência, o carimbo de criminoso maconheiro gera discriminações. Portas de empregos são fechadas.
A maconha fêmea não causa morte por overdose, como já se comprovou com base nas doses consumidas. Mas causa, quando consumida, perturbação no sistema nervoso central. Por isso, a proibição administrativa é legítima.
Espanto supremo
Durante o julgamento, dois ministros destacaram-se negativamente pelos seus votos.
O ministro André Mendonça mostrou-se pouco informado e, pela bola fora dada (entendeu que em nenhum país o Judiciário intrometeu-se nessa questão e que a legitimidade para isso é exclusiva do Legislativo), perdeu oportunidade para, sem polemizar, lançar seu voto pela constitucionalidade. No fundo, uma miopia decorrente, com o devido respeito, do seu fundamentalismo religioso.
Sem surpreender, já que está em fase pouco feliz, o ministro Toffoli não percebeu que a questão posta é constitucional e urgente, que vem gerando prisão e cadeia. Às pencas.
Como mostrou matéria da Folha de S.Paulo deste último final de semana, em situação assemelhada, negros, com mesma quantidade, são presos em flagrante por crime por tráfico e levados à prisão fechada, enquanto brancos permanecem em liberdade e se beneficiam da situação de usuários.
Não dá, conforme proposta de Toffoli, para aguardar 18 meses, como informou o UOL, até o Congresso legislar. Até lá, as prisões diferenciadas continuarão a acontecer.
Ora, trata-se de questão que está enchendo prisões. Questão que diz respeito a protegido direito constitucional da pessoa humana. Infinitamente mais urgente e grave do que suspensão de pagamentos de multas acordadas, em acordos de leniência, com corruptores e corruptos.
O correto é o inverso do proposto por Toffoli. O STF, desde já, deve mostrar ao Legislativo como deve ser interpretada a Constituição. Isso servirá para barrar emendas constitucionais e projetos legislativos ilegítimos.
Quantidade
A distinção entre usuários e traficantes, que devem ser punidos criminalmente com rigor, é matéria, como regra, da atribuição do Legislativo federal.
Até se pode admitir que o STF tenha um critério jurisprudencial diferenciador, porque envolve direito e garantia individual. E é salutar definir o que será a sua jurisprudência.
No caso da maconha, em análise pelo STF, a criminalização do uso lúdico, recreativo, é flagrantemente inconstitucional. Um escárnio aos direitos humanos.
Pano rápido. Os ministros do STF que irão a Lisboa participar do encontro apelidado de "Gilmarpalooza" poderiam se inteirar sobre a experiência portuguesa.
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