Wálter Maierovitch

Wálter Maierovitch

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Gonet viola a Constituição e cria foro privilegiado a Moraes

Como não estava presente, fico desconfiado que Paulo Gonet, procurador-geral da República, e Alexandre Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral, tenham ressuscitado a tese jurídica do juiz de exceção após o encontro jocosamente intitulado "Gilmarpalooza".

O juiz de exceção é o escolhido arbitrariamente para processo certo e determinado (ad hoc). É o selecionado a dedo, contra a Constituição e a lei, para, como regra, processar e julgar caso de "cartas marcadas", como se diz no popular.

A lembrar: Gonet e Moraes participaram do peculiar encontro "Gilmarpalloza" ocorrido recentemente em Lisboa e patrocinado pelo IDP, onde pontifica como manda-chuva o ministro Gilmar Mendes.

O IDP já teve Paulo Gonet como sócio. Gonet é amigo de Gilmar Mendes e de Alexandre de Moraes.

A lembrar o fato de Gonet ter sido apoiado por Alexandre Moraes e Gilmar Mendes, em um esforço desses supracitados ministros junto ao presidente Lula, para a vaga de procurador-geral da República, na sucessão do (anti)procurador Augusto Aras, conhecido filobolsonarista e de triste memória quando à frente da PGR (Procuradoria-Geral da República).

Como ensinava o saudoso jurista e historiador Antonio Padua Schioppa, na sua monumental obra "Storia del diritto in Europa" (subtítulo: Dal medievo all'età contemporânea), o princípio do juiz natural retira a possibilidade de designações arbitrárias.

No sistema judiciário brasileiro, o juiz de exceção é inconstitucional, arbitrário, hediondo.

Juiz natural

Uma das grandes conquistas civilizatórias, no campo da Justiça, foi o princípio do "juiz natural". É aquele pré-determinado pela constituição e pela lei, ou seja, antes de o crime estar tentado ou consumado.

Trocado em miúdo, quando o crime consuma-se, o juiz natural já está pré-estabelecido em lei. Não é inventado depois do crime.

Na nossa Constituição republicana, o juiz natural representa direito e garantia individual. É uma cláusula constitucional pétrea.

Sobre o juiz natural, Rui Barbosa escreveu como sendo princípio constitucional destinado a "manter os poderes no jogo harmônico de suas funções, no exercício contra balanceado e simultâneo das suas prerrogativas".

Volto a Padoa Schiopa que recordou tratar-se o juiz natural de direito e garantia do ser humano. E isso, frisou o jurista e historiador, está expresso na Declaração Universal dos Direitos da ONU, de 10 de dezembro de 1948.

No particular do juiz natural, o supracitado Schioppa remetia, também, à Convenção Europeia para a salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais da pessoa humana. Referiu-se ao artigo 6, parágrafo 1: "Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada de forma equânime, publicamente e num tempo razoável por um juízo independente e imparcial, constituído por lei..."

Barraco

No verão europeu de julho de 2023, o ministro Moraes, acompanhado da esposa e filhos, foi hostilizado quando aproximava-se da sala de embarque do aeroporto Leonardo da Vinci, localizado em Fiumicino, comuna de Roma. Estava Moraes e a família voltando ao Brasil e tinham todos saído de uma sala VIP.

A cena barraqueira foi apenas filmada pelas camaradas do aeroporto. Não existe áudio. Por evidente, e quando do exame do mérito, o áudio fará falta. E, com base nessa falta, o primeiro delegado do inquérito policial entendeu não haver crime a apurar.

Por solicitação atendida pelas autoridades italianas, as imagens foram remetidas e guardadas no gabinete do ministro-relator Dias Toffoli, que, em despacho, colocou à disposição dos imputados uma sessão especial de reprodução do filme, caso desejassem.
Cópia da fita não teve entrega deferida ao advogado dos imputados em inquérito, o respeitado bacharel Ralph Tortima. Uma ilegalidade.

Pelas hostilidades, Roberto Mantovani Filho, a esposa Andréia Mumarão e o genro Alex Zanatta, foram denunciados criminalmente, em peça assinada pelo procurador Gonet.

Todos os citados foram denunciados por Gonet por autorias de crimes de injúria e calúnia contra o ministro Moraes e família. Mantovani Filho restou denunciado, também, por injúria real, por haver dado um tapa no rosto do filho de Moraes.

Arbítrio intolerável

Por incrível que possa parecer, o procurador Gonet propôs a ação penal, no caso dada como pública condicionada, no Supremo Tribunal Federal (STF). Ora, ora. O popularmente denominado foro privilegiado só cabe quando o denunciado é detentor de prerrogativa, dada a função.

Atenção: Moraes não foi denunciado, sua situação é de vítima. Não é o STF o juiz natural deste caso.

Só será competente o STF no caso de os denunciados, depois desta peça acusatória recebida, apresentarem, arguirem, "exceção da verdade" em face da acusação de calúnia. Contra injúria a lei não permite exceção da verdade.

A exceção da verdade significa a possibilidade, nos crimes de calúnia, onde está em jogo a honra objetiva, ou seja a reputação, de se abrir oportunidade para comprovação da veracidade do que foi dito.

Os denunciados poderão, repita-se em caso de acusação por calúnia, apresentar exceção onde solicitarão a abertura de instrução para demonstração da veracidade do que imputaram a Moraes.

Com efeito. Gonet, contra a Constituição e a lei processual, ofertou um foro privilegiado a Moraes, que ele Gonet aponta como vítima.

Atenção: vítima não tem foro privilegiado. Só poderão ter os apontados como acusados.

Procurador natural não é Gonet

Como não existe no caso foro privilegiado, Gonet não é o procurador-natural.

Assim como existe o juiz natural, também existe, à luz da Constituição e da legislação processual penal, o procurador (promotor) natural, como doutrina Jaques de Camargo Penteado, na sua obra "Duplo Grau de Jurisdição no Processo Penal- garantismo e efetividade").

Para o caso, e uma vez admitida a jurisdição brasileira, o promotor natural seria o de primeiro grau. E o juiz natural também de primeiro grau (primeira instância). Nunca, jamais, Gonet.

Continua após a publicidade

Conexão e continência

Atenção: não existe, salvo por arte do mitológico Procusto, qualquer conexão ou qualquer continência com o inquérito pelo golpismo do 8 de janeiro. E nenhuma outra conexão ou continência com outras investigações em curso no STF. Constou da denúncia ter Moraes sido chamado de "bandido, comprado, comunista, ladrão e fraudador das eleições".

Os passageiros Mantovani Filho, Munarão e Zanatta, não sabiam que Moraes estava no mesmo voo. Nada estava previamente preparado. E nada conexo, a dar ao STF a condição de juiz natural.

Pano rápido. O Brasil ainda é um Estado de Direito?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes