Lorde Pinóquio: o juiz de identidade falsa
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O recente episódio ocorrido com o juiz de direito José Eduardo Franco dos Reis, acusado de ser autor de falsificações para se apresentar como detentor de linhagem nobre inglesa, faz lembrar o dramaturgo William Shakespeare (1564-1616).
Considerado o maior dramaturgo de todos os tempos, Shakespeare era hábil em misturar tragédias com pitadas de humor e polêmicas na narrativa.
O juiz Reis é personagem de carne e osso da tragédia de um mitômano que, pela fantasia compulsiva com falso sangue azul nas veias, transformou-se em caso de psiquiatria forense criminal.
Mas o caso está sendo tratado como Judiciário, com errônea suspensão do pagamento da sua aposentadoria: a Constituição garante vencimentos vitalícios, e Reis está legalmente aposentado.
O seu relato em interrogatório no inquérito policial faz parte da tragédia. No papel de Reis, um artesão de profissão, ele inventou um irmão gêmeo, juiz aposentado em São Paulo, que se mudou e vive em Londres.
Parêntese. Aos seus colegas juízes, quando no serviço ativo, Reis contava que iria viver na Inglaterra, quando da aposentadoria.
Atenção: a perícia técnica concluiu que as impressões digitais de Reis são as mesmas do imaginário Edward.
Reis, antes de ingressar na magistratura paulista, em 1996, havia, por falsificações, incorporado à sua identidade o nobiliárquico nome Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield.
Nada constou no exame psicotécnico realizado antes da sua investidura e posse no cargo de juiz. Dessa forma, e cumprido o estágio probatório, vitaliciou-se como juiz de direito.
Tomado por empréstimo o personagem do italiano Carlo Collodi (1826-1890), surgiu um Pinóquio de toga.
Mudança de rótulo
Tão logo explodiu o caso, que entre magistrados recebeu prontos apelidos de "sir Reis case" e "lorde Edward case", passou-se a falar em nulidades processuais, em especial das suas sentenças. Puro fermento sem base jurídica.
Antes de ingressar na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde bacharelou-se e obteve aprovação no exame de qualificação profissional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Reis, por meio de falsificações convincentes, transformou-se em Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield.
Por quase 40 anos, insinuou-se como de linhagem inglesa. Num dos seus mise-en-scène, propalou, quando juiz de direito em exercício, que estava se submetendo a tratamento com fonoaudióloga para perder o sotaque britânico: "Oh yes".
Segundo uma fonte desta coluna, que trabalhou com Reis na comarca de Serra Negra, o juiz Edward, que agora se sabe ser Reis, contava que tocava violino e teria estudado na célebre Filarmônica de Viena.
Quando o tema era remuneração e penduricalhos da magistratura, ainda contava a respeito de um parente, magistrado inglês, que, como outros, não recebia salário, mas um valor remuneratório "para viver e manter-se bem".
No concurso público de ingresso na magistratura paulista, em 1996, Reis foi aprovado e investido nas funções com o nome de grafia inglesa.
Nos seus sete nomes, tem até Canterbury, cidade-sede da religião anglicana e da magnífica catedral conhecida pelos turistas por Cantuária, ou Canterbury.
Talvez o juiz Reis tenha se inspirado na farsa montada pelo rei Henrique 8º em relação ao casamento com Ana Bolena, anulado dias antes da decapitação dela na Torre de Londres, em maio de 1563.
Processos nulos?
Para os que perguntam sobre nulidades dos seus atos jurisdicionais e administrativos, vale um exemplo.
Comecemos por imaginar uma garrafa de cerveja engarrafada no Brasil. Uma garrafa, por exemplo, que guarda a autêntica cerveja Antarctica Pilsen.
Essa garrafa, sempre com o mesmo conteúdo e essência inalterada, acaba tendo o rótulo trocado, falsificado. No lugar, colou-se um falso rótulo de cerveja inglesa, a popular Carling.
O conteúdo da cerveja se mantém o mesmo, é pura Antártica, e só o rótulo foi mudado por quase 40 anos, sem ninguém desconfiar.
O juiz Reis mudou o rótulo —a pessoa natural, física, sempre foi a mesma.
Nenhuma nulidade processual ocorreu nos processos judiciais e procedimentos administrativos judiciários nos quais ele atuou como juiz de primeiro grau de jurisdição.
Os inconformados com as sentenças e despachos guerrearam com recursos que foram reexaminados nos tribunais, por outros magistrados.
As partes que não recorreram aceitaram o teor das decisões. Não sofreram nenhum prejuízo com o nome falso, há pouco descoberto.
O princípio processual da identidade física do juiz não sofreu violação alguma. Até porque Edward e José Eduardo Franco dos Reis eram a mesma pessoa.
Reis, nascido na cidade termal paulista de Águas da Prata, trocou o rótulo caipira por sofisticado rótulo inglês.
Criminalmente, falsificou documentos e assumiu, sem se desvencilhar das pessoas naturais do nome original no registro civil, o nome Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield.
Patologia
Pura patologia psiquiátrica, que não interferiu na atuação de dizer o direito aplicável aos casos: jurisdição.
Ao que parece, consultados alguns livros de medicina legal, no tópico da psiquiatria forense, Reis é um mitômano. Tem por compunção mentir sobre a identidade. Mantinha as mentiras e foi providenciar falsificações voltadas a manter a fantasia.
O mitômano, pela literatura médico-psiquiátrica, pode ser tratado com sucesso.
Promoções
Durante a carreira de magistrado recebeu promoções por merecimento.
Nunca respondeu a processo disciplinar. Nas comarcas onde atuou, pelo que corre pela apelidada "rádio corredor judiciário", sempre foi discreto. Tratou a todos com urbanidade, respeito, como pessoa educada, ou seja, educação britânica, como um lorde inglês e sem as grosserias de um sir Winston Churchill.
Os critérios usados pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo são rigorosos para promoções por merecimento. Por exemplo, produtividade, aperfeiçoamentos e sem processos em atraso.
25 comentários
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Silas Costa Ferreira Junior
Eu ficaria muito aliviado e feliz se esse fosse o único problema no nosso Judiciário. Infelizmente os problemas sérios, que afetam o país inteiro, é que ele é caríssimo, ineficiente, lento, corrupto (vide a venda de sentenças em vários TJs), profundamente politizado (anjo e bozzo têm seus juízes de estimação), desatualizado, etc.
João Luís Nery
O judiciario mais caro do mundo, desnudado. Mais um escandalo. Juiz com nome falso. Juiz que nao é juiz. Juiz que vende sentença. Juiz que aumenta o proprio salario e manda tirar do teto de gastos. juiz que fura teto constitucional de salarios. Justiça que recebe a 1a dama do trafico. Este é só mais um. O desta semana.
Márcio Della Rosa
Certa dama: "Senhor Churchill, se eu fosse sua esposa, eu o mataria." Sir Winston: "Madame, se a senhora fosse minha esposa, EU me mataria." Isto não é grosseiro; é mais contundente, sutil e engenhoso que muitas linhas shakespearianas..